Camponesa, por Cipriano Dourado
Camponesa, por Cipriano Dourado

I

Era uma moira encantada
que se chamava Maria.
A sua gruta fechava-se,
apenas o sol nascia.

Nos seus olhos duas aves
cantavam sem alegria;
cantavam tristes, cantavam
toda a noite e todo o dia.

Os seus lábios tinham mel,
perfumes de malvasia,
e nos seus longos cabelos
uma chama negra ardia.

— Quem pôs a linda agarena
nessa colina sombria?
Quem lhe derramou nos olhos
taças de melancolia?

Perguntou um cavaleiro,
mas ninguém lhe respondia.
A sua espada brilhava
como o sol ao meio-dia.

II

— Onde vais, ó cavaleiro,
nesta noite de luar?
— Procuro a moira encantada
com quem me quero casar.

— Volta atrás, ó cavaleiro,
que a não podes encontrar.
Ela esconde-se na gruta,
quando sente alguém passar.

Cem jovens a procuraram;
foi vão o seu procurar.
Volta atrás, ó cavaleiro,
não passes deste lugar.

— Velho agoirento, não fales
a quem decidiu amar.
Terei a moira nos braços,
antes da noite acabar.

As estrelas cintilavam;
estava um mocho a piar.
De repente, na colina
começa alguém a cantar.

Oh que cântico tão doce
que deslizava no ar
como a asa duma pomba,
como uma onda no mar.

Partiu logo o cavaleiro.
O velho pôs-se a cismar:
o amor é como o vento:
ninguém o pode travar.

III

Já raiava a madrugada;
a estrela de alva luzia.
No trigal, junto da vinha,
cantava uma cotovia.

Era dia de S. João.
Gotas de orvalho, garridas,
acordavam nas estevas
e nas giestas floridas.

Cauteloso, o cavaleiro
avançava, sem se ouvir.
Vede-o chegar à colina
que começa de subir.

A linda moira lá está
— uma flor na penedia.
Está sentada e penteia-se
num reguinho de água fria.

O seu espelho é de prata,
o seu pente, de marfim.
Ao peito tem um raminho,
o raminho é de alecrim.

Oh que formosura aquela!
Que olhar tão doce e tão triste!
Formosura tão formosa
nunca existiu nem existe.

Está perto o cavaleiro;
o cavalo mal respira.
Olhando os prados e o céu,
a linda moira suspira.

Está perto o cavaleiro.
Está mais perto, pertinho.
Vai por detrás do fraguedo,
devagar, devagarinho.

A moira não dá por nada.
Levanta-se, de mansinho,
suspira e vai colher flores
num tufo de rosmaninho,

quando o cavalo, num salto,
num galope repentino,
surge a seu lado, feroz,
certeiro como o destino.

Abaixa-se o cavaleiro
como um raio dos espaços;
arrebata a linda moira
e leva-a presa em seus braços.

IV

Onde foi o cavaleiro?
Ninguém o pôde saber.
E a moira? Voltou, um dia,
mas voltou para morrer.

O seu rosto é como um lírio
que começa a emurchecer;
o seu olhar, como a tarde
quando está pra anoitecer.

Junto da gruta se senta;
dali não se quer erguer.
Passa as horas a chorar.
Toda a gente a pode ver.

Passa as horas a chorar,
passa as horas a gemer.
Já só tem a pele e os ossos.
Quem no havia de dizer!

Um dia, de manhãzinha,
quando o sol ia nascer,
na colina os passarinhos
começaram a tremer.

Porque tremeis, passarinhos?
Quem é que vos faz sofrer?
Ai Maria, a linda moira,
acabava de morrer.

Veio um bando de andorinhas,
veio para a recolher.
Alguém que foi à colina
não podia compreender.

Desde então, quem ali passa
começa de entristecer.
Lá está a gruta sombria
e um fio de água a correr.

Lenda contada em Castedo do Douro.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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