Um passeio no Rio Douro

Terminou o nosso passeio. Douro arriba, quando o autocarro passou a cavaleiro de Mazouco. De Barca de Alva até ali, com tantas curvas entre vinhas, olivais e manchas de um verde esmaecido de amendoeiras, alguns laranjais também, estes de cor mais pimpona, ao aconchego do regadio, impressionou-me o Penedo Durão com seu arreganho para terras de Castela, a recordar velhas quezílias. Dizem-me que há por ali abutres, talvez águias, mas naquele entardecer do dia 16 de Junho, não vi nenhum desses passarolos altaneiros, como se nos quisessem dizer que a nossa visita não lhes interessava por aí além. A contrastar com as terras cultivadas de Portugal, a solidão castelhana, com raríssimos olivais nas cumeeiras, destacando-se, isso sim, a chaga esbranquiçada de uma exploração de brita e areão e, pouco depois, uma barragem no rio que impede, por falta de eclusa, a passagem dos barcos.

Em Barca de Alva tinham os sete casais, que navegavam no confortável barco “Alto Douro”, parado para esticar pernas e manducar uns petiscos. Eu aproveitei ainda para revisitar um sítio onde há muitos anos, no regresso de Paris, por comboio, vira uma rapariga de foice na mão, a cantar. O comboio já ali não passa (desde o Pocinho, as estações do caminho de ferro estão abandonadas, tristemente silenciosas), mas a imagem da ceifeira nunca mais a perdi.

Moça tão formosa
não vi na fronteira
como uma ceifeira
que cantava rosa.

O saudoso Adriano Correia de Oliveira leu em Lisboa o livro onde eu incluíra o poema e fez-lhe música, cantou-o e incluiu-o num disco seu. Só mais uma estrofe que hoje me parece assumir um valor simbólico:

A saia de chita,
blusinha limão.
Que coisa bonita
sobre o coração!
Nos ramos da luz
um fruto limão.

 

Eu e minha mulher acompanhávamos mais seis casais ligados à cultura, ao ensino, ao turismo, ao desporto, ao emprego e a arquivos e bibliotecas, a convite de Mário Fernandes, homem de acção e não apenas de gabinete, Director do Instituto da Navegabilidade do Douro. Havíamos partido do Pinhão e trocamos muitas, muitas impressões, penetrando na história acidentada do País Vinhateiro, sobretudo e a partir da fundação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1756, com o impulso decisivo do Marquês de Pombal e com o trabalho atento de João de Mansilha, frade e professor, e Luís Beleza, juiz, ambos abastados lavradores durienses. A Feitoria Inglesa do Porto sofria na altura um pesado revés. A Companhia acabou por ser extinta, mas nesse tempo foi bem necessária, dadas a quebra de exportação e a falsificação do vinho generoso.

Se de Barqueiros ao Pinhão as colinas são mais fartas de vinhas, devido a uma relativamente maior suavidade das encostas, chamando-nos a atenção as linhas por vezes solarengas das casas de habitação; se do Pinhão ao Tua a terra declivosa se enruga mais, nos relevos que vão da quinta das Carvalhas à dos Aciprestes, a sul e da Roeda ao Roncão e Malvedos, a norte, vinhas de mais difícil cultivo, ao lado de mortórios – quando subimos do Tua à Valeira, ficamos impressionados com morros e fundões tão escarpados, admirando-nos que o homem conseguisse ali espaço para alimentar os seus sonhos. Na Valeira, melhor do que do rio, é do miradouro de S. Salvador do Mundo que se pode contemplar uma paisagem admirável, em simultâneo estarrecedora e fascinante, o azul do céu a gelar com o pensamento nas palavras. Aí, quando o temível cachão estava ainda a descoberto, naufragou o rabelo da célebre Ferreirinha, salvando-se esta e, desaparecendo no turbilhão da corrente o Barão de Forrester, amigo do Douro. Foi em 12-5-1861, na semana dos doze naufrágios. Estes aconteciam, apesar de o rápido ter sido amenizado, pelos fins do século XVIII, a pulso de homem, já que o dinamite não tinha sido ainda descoberto. A inscrição alusiva ainda se vê, tendo sido transposta para um nível superior durante a construção da barragem.

IMPERANDO D. MARIA PRIMEIRA
JÁ SE DEMOLIU O FAMOZO
ROCHEDO QUE FAZENDO AQUI
UM CACHAM INACCESSIVEL
IMPOSSIBILITAVA A NAVEGAÇÃO
DESDE O PRINCÍPIO DOS
SÉCULOS DUROU A OBRA
=DESDE 1780 ATÉ 1791=
PATRIAM AMAVI FILIOSQUE DILEXI

A partir daí, as grandes quintas não abundam tanto e o xisto, entre o Saião e a Foz do Sabor, dá lugar ao granito em ribas de grandes fragas arredondadas e vegetação arbustiva: e, se entre o Tua e a Valeira os barrancos fragosos são o “habitat” preferido de garças, aí o abutre é dono e senhor. Mas as quintas de facto continuam, algumas bem vistosas, como as que fui registando em apontamento: da Ferradosa, do Cachão, da Cockburns, de Vargelas, dos Canais, do Vesúvio, da Senhora da Ribeira, da Cruz e da Batoca, etc.

Eu, que tenho um fraco pela escrita literária, não posso deixar de me referir a esta última quinta, que foi de Guerra Junqueiro e onde ele vinha frequentemente. E, já agora, para terminar esta crónica, uma anedota que me contaram sobre o poeta e relativa a uma conversa que na Batoca ele teve com um amigo, 1885, após a publicação de “A Velhice do Padre Eterno”.

– Ó Junqueiro, você está perdido, pois disseram-me que o Vaticano o vai excomungar.

O poeta sorriu, sacou do bolso uma pistola, apontou na suposta direcção do Vaticano e disparou.

– Pronto, matei o Vaticano.

– Como assim, se a bala não chegou lá?

E Junqueiro, malandro, batendo com a mão no peito:

– Também a excomunhão não chega cá.

Claro que Junqueiro, pelo fim da vida, corrigiu muitas das afrontas que fez à religião e à Igreja, mas tinha nessa altura uma escrita impetuosa, como as águas barrentas e turbilhonantes do seu rio.

Patriam amavi filiosque dilexi”. Amei a pátria e os seus filhos tive em muita estima.

in Terra Quente (15-7-1998)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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