Um barbeiro diplomado

Quando tinha a idade das vinhas a assumirem-me diariamente os olhos, comecei eu a sentir uma admiração respeitosa, que o respeitinho é muito bonito, pelo senhor José. Para ser doutor só lhe faltava o curso, que o diploma já toda a gente lho conhecia, e como tal era tido e havido na aldeia. O senhor José Tairéis, segundo alcunha de família, se calha por mor de alguns tamancos, penso eu, numa tremida hipótese etimológica. Homem dado ao sério, quando tinha de falar no exercício da sua arte, media as palavras, abrindo mesmo pausas melódicas como se entoasse versículo dalgum salmo e isso era razão suficiente para se lhe notar um certo ar profético.

Pelo Verão, era numa varanda que dá para as traseiras e o quintal, mesmo rente a uma cerejeira, que ele recebia os clientes; no Inverno era no compartimento mais asseado da casa. Ora pois, a letra a condizer com a careta.

Senhor José, olhe que aquele diploma fala como gente grande.

Encaixilhado e a ladear uma prateleira com alfarrábios e alfafa envidraçada na parede, um pouco acima, destacava-se uma declaração de filiado na Sociedade Philanthropica Transmontana da Bahia com um sublinhado a tinta dourada: Nosso Ilustre Barbeiro e Tiradentes.

Eu, que era aluno da primária, embora já espigadote, chamava diploma àquela declaração porque assim mo tinham ensinado. Além de não custar nada, também tinha aprendido que o respeitinho é muito bonito, acrescendo que no caso vertente era e é justamente merecido: se estou na aldeia e vou ao cemitério, ainda olho para a sua campa.

Coisa que o senhor José não soubesse, não só a respeito de barbas e cabelos, bigodes e cavanhaques, dentes e dentuças ou dentes de cebola, mas ainda sobre mezinhas e tradições populares, tal como tratar a espinhela caída, mordeduras de bicho ruim e arquitectar uma cascata de S. João, não passava pela cabeça de mais ninguém.

Sabe, menino, eu não acredito em feitiços porque vou à missa, mas acredito nas feiticeiras. Até já as vi dançar o tiroliro com o Diabo na encruzilhada das Alminhas. Conte, conte, ó ti Zé. Senhor José — dobre a língua, menino. Mas ele ficava-se por aí. Feitiços e feiticeiras? Basta fazer o sinal da cruz, nanja como os pagões… E punha-se a fitar-me: olhe que eu bem sei que se diz pagãos — digo pagões só para aferroar. Como eu, senhor José, ao escrever esta crónica. Apetece-me chamar cristões a uns tantos mariolas da cristandade ocidental que, mercado livre para aqui, mercado livre para ali, esquecem e trocam valores espirituais pelo Deus Milhão de que falava Junqueiro, o poeta da Lágrima que vossemecê recitava com todos os efes e erres.

Qualquer dia, vou-te fazer a barba, ó Teixeirinha. A mim? Sim, ao buço. Vou-te barbear o buço, pois já estás a ficar um hominho.

Sempre que o meu pai lhe precisava pessoalmente dos serviços, era o mestre que se deslocava a nossa casa, pois eram amigalhaços.

Ora, cabelo nos conformes, barba feita e cu raspado, ouvi-o dizer ao pai que acabava de sair da adega, feita pontualmente barbearia, a fim de ir buscar um petisco para a merenda. Cu raspado! Que quer dizer cu raspado, senhor José? E ele: cu em franciú é pescoço, ou não é assim? Ora eu raspei-lhe bem o pescoço, até ficar a luzir. Pus-me a vê-lo meter os utensílios fascinantes numa saquita, sentei-me num dos mochos de por ali e, ao que agora penso, devo ter fechado completamente olhos risonhos. Da  varanda de sua casa eu via a cerejeira bical com um diploma a flutuar em ramo alto. Vinhas ao longe e morros fragosos de javalis e mato rascão. Via-se o mundo, enquanto uma navalhinha de seda me passava na pelugem de entre o lábio superior e o nariz. Até que acordei. Quanto tempo decorreu? Quanto, neste espaço volúvel e ervado que é a vida de cada um de nós, aos encontrões, dum lado e doutro, como se fosse um rio a descer e a subir ao mesmo tempo? O meu pai afiançou-me que pouco mais teriam passado que cinco minutos a cortar uma lasca de presunto e a buscar um trigo de quatro cantos. Por aí, por aí — garantia senhorial de Mestre José.

Se foi assim…

Se foi assim o quê?

Então o senhor José não me fez a barba?

Qual o quê? O senhor não me pediu.

Levei as mãos ao queixo e verifiquei que na minha tão frágil nave espacial tinha recuado cerca de quarenta anos. Já sabia por leituras malucas que se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Mas quarenta anos em cinco minutos é obra. Calei-me com o jogo e fui manducar um quarto de trigo com uma boa fatia de presunto e um bom tintol a acompanhar. Souberam-me pela vida.

Até à próxima, ilustre barbeiro. Qualquer dia, peço-lhe para me arranjar os dentes, que onde está agora deve saber-se mais do que nas baías e filantropias de todos os brasis.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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