Jogo fisionómico, jogo de luzes, jogo de sombras, jogo cénico… No palco, o teatro é jogo. Mais do que na expressão literária.
O autor literário quando escreve joga na mensagem e na sua forma, fazendo ainda jogar entre si os agentes da acção e os ingredientes técnicos. O código ludencial aplica-se a toda a linguagem literária, mas a encenação e a representação no palco prolongam e diversificam o jogo.
Escreveu acertadamente Bertold Brecht:
A função do teatro, como a das restantes artes, consiste sempre em divertir. Esta função confere-lhe sempre a sua especial dignidade. Não precisa de outro requisito que não seja o de divertir; mas, sendo assim, este é-lhe absolutamente imprescindível. O teatro não deve propor-se o objectivo de ensinar ou de ensinar coisas mais úteis que o mero facto de mover-se prazenteiramente, tanto corporal como espiritualmente. 1
O primeiro objectivo do jogo é o de divertir, embora se lhe possam acrescentar outros, como o interesse económico e a fama. Para haver jogo, porém, o prazer é “absolutamente imprescindível”. Os elementos miméticos e conflitivos, sem os quais o teatro deixa de o ser, definem a estrutura fundamental do jogo, através de uma actividade interessante. Isto é válido para todo o teatro autêntico, seja o de Sófocles, o de Gil Vicente e o do próprio Brecht. O jogo é produzido pela busca de prazer que no entanto admite finalidades didácticas suplementares: a análise social, por exemplo, no teatro brechtiano.
E no teatro popular tradicional? Também.
Os autos sagrados da Idade Média radicam-se na tendência humana para o jogo teatral e surgem ainda da necessidade de tornar mais impressivos os ditames e os dogmas da religião. Mais impressivos através de um espectáculo agradável. Mas, estando em causa uma crença religiosa, o objectivo lúdico pode ficar subalternizado. Há quem fique mais edificado e instruído com a pregação de um auto que com a de um púlpito. O jogo atenua-se ou desaparece na razão inversa do prazer exclusivo; tal como no teatro de agitação e propaganda.
O Acto da Primavera, que é um auto da Paixão de Cristo (filmado por Manoel de Oliveira na aldeia da Curalha (Chaves), é jogo enquanto representação escrita ou oral (primeiro nível), enquanto encenação dramática (segundo nível), enquanto filme (terceiro nível) e enquanto visto por uma assistência (quarto nível). Mas a fidelidade à história e a eventual adesão mística de um actor ou de um espectador contrariam a ludicidade total.
- in O pequeno órganon (1949) ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.