É um costume já muito antigo de apupo às mulheres idosas, próprio de quarta-feira da terceira semana da Quaresma. Em Horta de literatura de cordel 1, Mário Cesariny recolhe três interessantes textos em verso, um sem data e os outros de 1786 e 1806, sobre este costume alfacinha. Num dos textos, de que é autor Francisco Mariano do Advento, relata-se que um dos brincalhões finge de velha a fazer um discurso trocista, sendo a seguir introduzido, simuladamente, num cortiço e levado a serrar. O “sacrifício”, porém, não se consuma, pois, dado certo sinal, chicotes e bofetadas retinem no ajuntamento, indo finalmente os autores da função parar ao Limoeiro, onde até “mulheres se acharam, sem licença dos maridos”.
O jogo dramático generalizou-se no país, traz as marcas das cantigas de escárnio e de maldizer dos tempos trovadorescos e constitui um brinco trocista e galhofeiro em desfavor das velhas estéreis a que, em certos casos e pitorescamente, se ligam bruxedos e maldades.
Em Afife chamam-lhe Serração da Belha ou Serra-a-Belha. À noite, forma-se um cortejo no Largo do Cruzeiro, indo à frente a Belha (manequim com uma armação de arame, papel de cor e lâmpadas dentro) bem erguida por um folião e, atrás, muita gente, alguma dela com triclitraques (matracas). Do lugar da Gateira aparece outro desfile com a respectiva Belha, sendo uso atirarem-se mutuamente terroadas, numa tentativa de danificar a Belha contrária. Um dia, uma câmara de televisão ficou mesmo cheia de lama. A regra é a alegria geral, sendo raros os casos de excesso.
No lugar da Guimbra (Rebordosa, Paredes) a Serragem da Velha tem atingido, desde 1975, grande pompa, chegando os rapazes a transportar um caixão de sete metros de comprimento, onde se imagina a velha, num luzido cortejo de carros alegóricos. O alvo das sátiras não são apenas as velhas e solteironas, mas ainda as mulheres de mau porte, como se vê nesta quadra:
Cobiçar homem alheio
é um pecado mortal.
Mais pecado é se ele é feio,
muito velho e cheira mal.
Na crítica mordaz às solteironas e às idosas visa-se a infecundidade, num alarido estrepitoso que coincide com o fim do Inverno e a chegada da Primavera. Depois de dar a volta pela freguesia, o visto cortejo trepa a um monte onde, após as deixas, são consumidos em grande fogueira os despojos da festa. Segue-se pela noite dentro a presuntada e o tintol. Na Guimbra, a tradição requintou-se e raia já a intenção turística.
Noutros pontos do país, durante as surriadas junto das casas das velhas, serra-se um cortiço (ou finge serrar-se, raspando nele um pau — Macedo de Cavaleiros) e queima-se ou enterra-se, depois. Por vezes, lê-se o testamento da velha.
Há lugares em que o costume é o de o rapazio percorrer as ruas, em grande alarido, a tocar em latas velhas, com paragem à porta de uma ou outra idosa mais rabugenta, gritando-se ditos como este: “Ó minha avozinha, dê-me um rabinho de sardinha.” Em Aboadela (Amarante) canta-se assim:
Serra, serrinha,
serra, se não,
a velha está morta,
venha o caixão.
Em Torres Vedras é da tradição os putos divertirem-se a recolher pedaços de telha velha, quebrando-os nas soleiras das portas, quando não nestas.
Em Elvas e certas zonas de Guimarães, Porto, Lisboa em Turquel, conta C. Lopes Cardoso, os manifestantes vão ao ponto de provocar os que assistem, mimosear-os com pauladas.
Em Abambres (Vila Real) serra-se a velha mais idosa, ao som de latas, panelas e tachos velhos, cantarolando:
Serra-se a velha.
Quem será ela?
É uma carrancuda
que está dentro da panela.
Serragem da Velha é a designação utilizada em muitos lugares, tal como Serrar a Velha ou Serra-a-Velha. Serrada da Belha diz-se em Tourém e Vilar de Perdizes (Montalegre), como nos conta Lourenço Fontes 2. Em Tourém, os rapazes, bem munidos de chocalhos das vacas, vão-se às portas das mulheres idosas e fazem grande barulheira até conseguirem uma “velha de palha” que, de seguida, enfiam em grandes paus, indo queimá-la fora da aldeia. Em Vilar de Perdizes, o costume junta homens e mulheres num “rito muito semelhante a um responso religioso, cantado em latim, à porta das velhas”.
Hirondino da Paixão Fernandes 3 refere-se especialmente ao destino da velha serrada, bem ilustrado em quadras como esta:
Serraremos esta belha,
esta belha chocalheira,
a ber se deita madeira
prós aros de uma peneira.
Este bem lúdico costume corresponde a jogos como os enterros do Carnaval, do Galo, do Bacalhau e do Velho, Queima de Judas, Pai da Carne e Pai da Fartura. Grimm pensa que a serração significa a expulsão da morte conotada com a esterilidade da velha e há etnólogos que a associam ao Ano Velho e até ao Inverno. Para Frazer a velha transforma-se num bode expiatório dos crimes praticados pela comunidade ao longo do ano. A. van Gennep vê neste costume, sobretudo, um rito de passagem: “O período de jejum da Quaresma é cortado ao meio por um dia gordo: inventou-se uma personagem que se cortará ao meio 4.”
A Serração da Velha também se pratica noutros países europeus como a Itália, Espanha, França, Suíça (serragem da Bagorda) e Rússia (cerimónia fúnebre de Kostrubonko). Entre nós o acto de serrar um boneco de palha ou um cortiço é menos frequente do que o de um acompanhamento ruidoso, com gritarias, toque de latas e outros objectos de que se arranque vibração e estardalhaço, acabando a Velha por ser maltratada até à destruição pelo fogo, como que diz: “o que lá vai lá vai” e “quem andou não tem pr’andar”. Ou então: “rua co empecilho”.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.