Pedras Salgadas
Que seria da luz se não houvesse tantos silêncios
incontidos? Contornamos a povoação
de mãos dadas com um voo inclinado de estorninhos.
A tarde perto do fim.
E chegamos finalmente ao parque das Pedras Salgadas.
Setembro até à cintura. Quase ninguém.
E um resto de água estagnada no rio Avelames.
Foi assim que eu e tu numa janela ferida,
nas casas desabitadas, nas folhas que iam sobrando
ou nas bolhas de água de campânula em campânula
nos reconciliámos com o tempo.
Os esquilos cruzam-se à nossa frente: os teus
passos a transbordar, antes de lá chegarmos.
Vamos entender-nos: o isolamento de Rilke
no castelo de Duíno é outra coisa: o mar
protegia-o dos rochedos, perfume de palavras
no tinteiro argênteo e um anjo a florir
na jarra da escrivaninha. Quem disse que o eremita,
poeta ou não, escava sempre, sempre, a sua pobre
ilusão numa laranja?
Embrenhamo-nos agora no eremitério
de cobras e morcegos onde ainda se lê
Hotel Universal, telhado a cair sob o peso que sobe
de velhos salões onde foram as sacratíssimas
bodas do nosso casamento. Até onde iremos
com esta dúvida, as elegias de Duíno
debaixo do braço?
Talvez o caminho mais curto para o coração
de uma coisa consista em despovoá-la
da sua memória. De facto, a poesia é o esplendor da
verdade que nunca é a mesma coisa em dois momentos
contíguos, aqui ou no Bois de Boulogne.
Não, não é aconselhável ver símbolos por toda
a parte: o Universal tem telhados a mais e as
silvas são tão necessárias como um arranhão
na pele. Não prestaremos culto a nenhum deus que
caiba dentro do caracol. A época das chuvas
aproxima-se, ó Avelames.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.