Prémio Literário António Cabral 2023
Não sei porque é que os dias
de canícula se chamam assim
— Konrad Lorenz
A escrita é um cão a ganir à porta que se abre
para lhe dar mimos, o agasalha à lareira com
um osso farto e tanto o escorraça, mesmo se é
noite e uma carnificina de neve lhe imobiliza
as mandíbulas. O cão escava fundo e tapa, ou deixa
buracos escondidos como luras, outros como túneis
de metro ligando cidades e a porte abre ou fecha
mas o cão nunca desiste das palavras que não
adestram. Se o dono o castiga, sofre mais ainda
a dor animal esgravatando o alvoroço do poema
que tarda, por mais que as orelhas no ar
farejem a música e o focinho irrequieto mostre
as narinas dilatadas de desejo por um verso,
uma constelação de linhas onde todo o universo
se banhe num caudal de palavras honestas.
O cão a caminho das palavras duras de roer.
Rosa Alice Branco nasceu em Aveiro em 1950. Tem 12 livros de poesia publicados em Portugal, incluindo a sua obra poética reunida Soletrar o Dia (2002). O seu primeiro livro, Animais da Terra, veio a lume em 1988. Reconhecida internacionalmente, a autora tem a sua poesia publicada em inúmeros países, tanto em livros como em revistas literárias. Participa regularmente em Festivais Internacionais de Poesia, tendo representado Portugal no Poetry Parnassus Festival, em Londres (2012). Venceu diversos prémios internacionais, entre eles o Prémio Espiral Maior de Poesia, em 2008, com Gado do Senhor (& etc), cuja versão em inglês foi considerada, pela The Chicago Review of Books, como um dos 12 melhores livros de Poesia dos USA, de 2016. o que lhe valeu uma digressão com leituras e debates em várias universidades dos USA, em 2018. Neste mesmo ano, o seu livro de poemas Traçar um nome no coração do branco é publicado pela editora Assírio & Alvim. O seu livro Amor Cão e outras palavras que não adestram saiu, também pela Assírio & Alvim, em Fevereiro de 2022.
A par com a atividade literária, Rosa Alice Branco tem um doutoramento em Filosofia Contemporânea, dedica-se profissionalmente à Neuropsicologia da Perceção e à Estética, sendo dois dos seus livros de ensaio dedicados à perceção nas artes: O que falta ao mundo para ser quadro e, no Brasil, A condição secreta do visível. É tradutora, investigadora e promotora cultural. Neste último âmbito, organizou vários colóquios e festivais de poesia, dentro e fora de Portugal, e foi coeditora de revistas de filosofia e poesia.