Pirulita ou púcara (dados)

Pirulita ou Púcara (dados). Da série "Trás-os-Montes" na década de 1980 por Eduardo Perez Sanchez
Pirulita ou Púcara (dados). Da série "Trás-os-Montes" na década de 1980 por Eduardo Perez Sanchez

Um dado, numerado de um a seis, que o chamado banqueiro agita dentro de um púcaro de lata ou copo de plástico, à vista dos outros jogadores e da assistência. Volta a boca do recipiente para baixo, ocultando o dado. Numa placa ou cartão rectangular há seis casas numeradas de um a seis, como o dado. Os jogadores colocam moedas ou notas numa ou em várias casas. O banqueiro levanta, então, o recipiente para que se veja o número do dado voltado para cima. Por cada quantia da casa correspondente a esse número o banqueiro tem de dar aos apostadores cinco vezes mais; as outras quantias ficam em seu poder.

É um jogo de feiras e festas populares muito do gosto dos ciganos.

Desde o princípio da Monarquia que em Portugal o jogo de dados não foi bem visto por toda a gente, caindo sobre os seus praticantes muitos castigos (vide nota histórica). No reinado de D. Manuel I, tendo-se juntado uns homens em certa casa para jogarem, houve quem alvitrasse os dados. Um deles fulminou-o logo:

“Senhores, nem por pensamento nos passe que há no mundo dados, porque não há mor prova de eles serem infernais que ser a eles jogada a vestidura de Nosso Senhor Jesus Cristo”. 1

Um pouco de história

Não tem sido pacífica a história do jogo. Basta dar uma vista de olhos pelo nosso espólio literário medieval para saber que os jogadores eram tidos em má conta, quando jogavam a dinheiro. Logo nos primórdios, o trovador Pero Garcia Burgalês critica Maria Balteyra por jogar aos dados. Nas páginas dedicadas aos costumes e Foros de Castello-Bom, de 1188 a 1230 (Portugaliae Monumenta Historica), diz-se:

“qui jiogare dados de nocte pectet I morabitinum a los alcaldes, et in la casa ubi los jogarem pectent II morabitinos a los alcaldes: si negaret, iuret sibi tertio” (quem jogar dados de noite será multado pelos alcaides em um morabitino, e a casa onde eles forem jogados será punida em dois: se negarem, ser-lhes-á exigido um terceiro).

Em Alfaiates (1188 a 1230) era pior:

“Toto homine in cucha casa iogarem dados de noche inforquen lo quomodo ladron, el illi qui iogarent pectet X morabitinos pera la ponte” (todo o homem em cuja casa jogarem dados de noite enforquem-no como ladrão, e aqueles que jogarem serão multados em dez morabitinos para a ponte).

Vá lá que neste caso o fim da multa era nobre.

Segundo as Ordenações Afonsinas, D. Dinis tinha cominado de pena de morte o jogo com dados falsos (1304). D. Afonso V considerou a pena excessiva e substituiu-a por açoutes públicos e degredo para as ilhas. O que se proibia era o jogo a dinheiro, fosse ele qual fosse, como acentua uma lei de D. Afonso IV que D. João I corrobora, estendendo a punição a sucedâneos de dinheiro, tal como cabritos ou galinhas, mesmo que se tratasse de um jogo recente como o “curre-curre”.

Eram, pelo contrário, aconselhados os jogos de ar livre de que se podia tirar algum proveito social. Assim, D. Fernando encomendou a Pero Menino o Livro de Falcoaria (tratamento e treino de falcões para a caça); D. João I escreveu o Livro da Montaria sobre a caça ao javali; e D. Duarte compôs o Livro da Ensinança, em ordem à aprendizagem e treino de montar a cavalo. O fito do Mestre de Avis e seu filho era o manejo das armas como preparação para a guerra, o que os levava a subalternizarem jogos como a Péla e a Braçaria (arremessar uma lança ou barra o mais longe possível). Pesava também neles a vontade de morigerar os costumes, cristianizando-os. Foi assim que o Mestre aprovou as ordenações da Câmara de Lisboa que proibiam “costumes gentios no princípio do ano e no mês de Maio, determinando que se fizessem procissões em sua substituição”.

Os escritores iam-se fazendo eco dos malefícios atribuídos ao jogo. No século XVI, Gil Vicente, no Auto da Lusitânia, põe na boca de Lediça, que se dirige ao Cortesão, estas piedosas palavras: “Crede, Senhor, que o jogar / poucas vezes aproveita.” E Sá de Miranda considera o jogo “mal sem emenda”, aprovando D. João II que “mandou pôr fogo à casa e aos jogadores”. No século seguinte, D. Francisco Manuel de Melo sentenciava, ao seu jeito de moralista: “O jogo em todos os estados é ruim ofício”. E convinha nisto: “Era dito de um discreto que vinho, jogo e tabaco se deviam vender nas boticas como mezinhas.”

O século XVIII foi mais permissivo. “Mas a tolerância setecentista revestiu, perante o jogo, um carácter especial de excepção e privilégio, que não a tornou simpática” — diz Júlio Dantas em Figuras de ontem e de hoje. “A introdução, com D. João V, dos costumes franceses na corte; a liberdade, tão combatida pelo Conde de Vimioso, e até então desusada, de homens e mulheres poderem dançar, comer e divertir-se em comum nos serões do Paço; a necessidade de preencher as longas noites nas grandes casas fidalgas, e, sobretudo, a manifesta dificuldade de habituar o português ao delicado prazer de conversar, determinam a aristocratização do jogo de azar e de parada na primeira metade do século XVIII.”

De um documento de 1708 sabe-se que em casa do Marquês de Cascais, em Lisboa, se jogava muito: “nesta assembleia assistem muitos senhores que se divertem em várias mesas” (carta de Brochado ao Conde de Viana, em 28 de Janeiro). Os jornais manuscritos desse tempo dão notícia clara: “O correio-mor perdeu em casa do Conde de Arcos ao jogo do truque 18 000 cruzados, que lhe ganharam 8000 o Mons. Manuel Gonçalves da Câmara; 8000 D. José de Noronha, filho do mesmo conde, e 2000 traveças” (Mercúrio de Lisboa, n.º 12, 20 de Março de 1745), vide Mário Gonçalves Viana, Poesias (do Abade de Jazente), Porto, 1944.

Na cidade ou nos meios rurais os jogos de azar eram a “distracção favorita. Jogava-se às escondidas, em tavolagens improvisadas e secretas, nas boticas e mercadores”, como nota Alberto Vieira Braga em relação a Guimarães (Curiosidades de Guimarães — mulheres, jogo, festas e luxo). Faustino Xavier de Novais dedica ao assunto esta quintilha:

Atenta bem neste espelho:
Joga o fidalgo janota,
Joga o janota fedelho,
Vai, noite e dia, à batota,
Macho e fêmea, novo e velho.

Também os eclesiásticos frequentavam as casas de jogo, não sem as advertências severas dos seus bispos. O Abade de Jazente, que todavia não parece ter sido especialmente advertido, menciona entre os seus passatempos favoritos:

Ora a pesca, ora o jogo, ora o passeio.

E noutro soneto:

Passo em casa as manhãs, janto, dou graças,
monto a cavalo e vou-me para o jogo.

Eduardo de Noronha, que observa a febre do jogo ter persistido, mesmo depois das invasões francesas, diz (vide Reinado florescente) que o jogo é um “veso constituitivo do lusitano”.

Com o liberalismo foram-se amaciando as proibições, mas os jogos continuavam a praticar-se. Uns a dinheiro; outros, como divertimento. Em Viagens na minha terra diz Garrett, dirigindo-se às cinzas dos capitães, letrados e grandes homens de Santarém: “Que não mandem os soldados jogar à péla com as caveiras dos teus reis, e a bilharda com as canelas dos teus santos.” Foi pena que esse ilustre escritor, que em tão boa hora recolheu chácaras e romances populares, não tivesse a mesma ideia em relação aos jogos. A psicologia científica não tinha nascido.

Quando Camilo escreve em As três irmãs que “o jogo é a mais cega e despótica das paixões” estava a pensar no jogo a dinheiro, como aposta, que pode arruinar uma família. Mas o escrevê-lo tão directa e asperamente deixa subentendido o seu desconhecimento real do jogo como forma de educação. A distinção não é feita.

Hoje, continuam proibidos os jogos a dinheiro, a não ser em ambiente autorizado. E há jogos populares especialmente visados, pelas torturas infligidas aos animais, como a Tourada, com a morte do touro, e o Galo, seja na modalidade em que este se enterra com a cabeça de fora, seja na de o suspender de um fio (Decretos 5650 e 5864, respectivamente de 10 de Maio e 12 de Junho de 1919, e ainda Decreto-Lei 15 335, de 11 de Abril de 1928, este quanto às touradas).

  1. In SARAIVA, José Hermano – Ditos portugueses dignos de memória. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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