O Douro não é só vinhedos espraiados nas ladeiras voltadas ao rio e nas zonas mais altas, frescas e menos acidentadas: é também a quintarola ou granja de pequenas dimensões, o quintal à beira da casa de habitação ou dela afastado – o praediolum dos romanos. Por vezes o prédio murava-se e daí as designações de tapado e cerca, que ainda se mantém. Necessária era a presença de água em poças e poços de nascente directa ou de mina. Todos os lavradores, desde o pequeno ao abastado, tendiam a possuir um prédio dessa natureza para horta e pomar, plantando pequenas vinhas de um a dois milheiros de pés no terreno mais declivoso, bordando-as de oliveiras, algumas amendoeiras ou macieiras, figueiras, cerejeiras e outras árvores de fruto, com destaque para uma ou duas nogueiras, perto da água, e laranjeiras nos locais mais quentes. Em vez de elegante moradia das quintas, erguia-se aí um cardenho destinado não só à recolha de alfaias agrícolas, mas também a uma ou outra refeição e a abrigo, quando começava a chover, particularmente nas trovoadas.
Lembro-me também das cerejas bicais, pontinhas da manhã em cada ramo, e dos cebolecos que se golpeavam em quatro partes e com sal dentro se comiam acompanhados de centeio e água do grabano. Foi assim que a hortinha entrou dentro de mim onde ainda hoje se conserva.
Lembro-me bem de em pequeno ir com os meus pais para um tapado assim. E lembro-me especialmente dos figos pretos, que eram uma delícia do sol. Ó pai, quando põe aqui também uma aveleira? É que no caminho tinha-me cruzado com um charranasca da minha idade que levava os bolsos cheios de avelãs: deu-me não sei quantas e fiquei ougado. E o meu pai disse-me que a aveleira não se dava naquele sítio – já experimentara e nicles. Além disso não adiantava ter fruteiras que os vizinhos não tivessem: os ganapos larapiavam-nas como três e dois serem cinco. Lembro-me também das cerejas bicais, pontinhas da manhã em cada ramo, e dos cebolecos que se golpeavam em quatro partes e com sal dentro se comiam acompanhados de centeio e água do grabano. Foi assim que a hortinha entrou dentro de mim onde ainda hoje se conserva.
Subitamente recordo-me dalguns cabeços pejados de leiras de centeio. E das malhadas. Homens valentes com seus manguais, ãh, ãh, pichorras de vinho, pataniscas de bacalhau, eiras da minha infância. Onde está agora tudo isso? As vinhas, tenho pena de o dizer, alambazaram-se de tudo. Não me parece que a monocultura seja estimável na nossa terra.
O vinho fino lá se vai vendendo – irá? – mas o vinho-consumo atravessa horas difíceis, estando as adegas e armazéns dos compradores a abarrotar do das suas colheitas anteriores. Que fulano de tal está à beira da falência, que começaram os despedimentos, que a culpa… É de quem?
Escrevo este apontamento em Junho de 2002 e não me sai do pensamento o que tenho ouvido aos viticultores, desde o pequeno ao grande. O vinho fino lá se vai vendendo – irá? – mas o vinho-consumo atravessa horas difíceis, estando as adegas e armazéns dos compradores a abarrotar do das suas colheitas anteriores. Que fulano de tal está à beira da falência, que começaram os despedimentos, que a culpa… É de quem? Da ambição desmedida, da autorização imprudente de grandes plantios, de importações suicidas, do fraco poder de compra de quem consome o vinho, se pretende vinho de qualidade, etc. Tudo junto.
Certos pensadores neomodernos têm falado na urgência de regressar às origens e entre o mais de optar por pequenas e médias empresas, a fim de obstar ao perigo das multinacionais e da globalização. Aconselham mesmo a pequena exploração agrícola, por motivo de qualidade de vida. Não tenho bem a certeza de que o elixir universal venha a ser esse, pois a história evolui, mas lá que põem o dedo na ferida isso é que põem. Pô-lo-ei com esta minha toleima de escrever sobre granjinhas e tapados que já não são o que eram?
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.