Estou há meia hora debaixo da ramada, a quarenta e cinco passos do portão, atento ao que vai na rua. Ainda não vi um homem a cavalo: vê-se cada vez menos. Pouca gente e alguns carros — sinal de quê? Um rapaz de pólo sanguíneo atrai-me a atenção: atira com uma bola ao ar, não a apanha por qualquer motivo e desaparecem os dois. Carros e pessoas — invólucros, uma espécie nova de cartuchos que fossem vertendo a mercearia. Aquela mulher tem o andar cheio de rasgões por onde se escapam as manhãs. E duas crianças chilreantes param um pouco e põem-se a brincar à cama do gato, julgo que sim, pois um bando de pardais levanta voo de uma amendoeira. Tenho a impressão de que alguém me vê e por isso não sei se sou eu ou os passantes que vêem as sombras no fundo da caverna platónica. Talvez eu, mas garanto que estava e estou de frente. Ora, é hora de almoçar. Sim, sim, já vou, digo à minha mulher que me chama da janela. Ao subir as escadas, noto que a sombra caminha à frente e vejo o portão de mais perto: lá vai um camião bojudo, silvante, réplica sem dúvida do asteróide 2002 NT7. O mundo está cheio de réplicas. É com elas. Apetecia-me ouvir a este respeito os melros que têm ninho na figueira e me lambiscaram já quase todos os figos. Bom apetite, meninos, e estai sossegados que eu, embora pareça, não sou nem faço parte de nenhum asteróide, pelo menos até ver.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.