Descrição
Ligado, nos seus pormenores mais insignificantes, a um concreto regional, a narrativa revela-se como exemplo de verdadeiro realismo crítico. Nas suas incursões oníricas, sonda os comportamentos morais e socioeconómicos da pequena e média burguesia rural; dos “leaders” autárquicos e culturais, juntando os efeitos da ironia a uma linguagem ácida (pelo uso do palavrão e das variantes orais não dicionarizadas).
Partindo desta constatação de sentido e dos problemas postos e pendentes no universo romanesco de António Cabral, Luís F. Adriano Carlos definiu Memória Delta como um romance “caleidoscópico e telescópico”. Fazendo um levantamento das estruturas sémio-narrativas e discursivas, o professor de Literatura Moderna da Faculdade de Letras do Porto assinalou que a escrita de António Cabral, pela contextura da sua organização própria – que não pode ser desfeita – é uma grande anáfora e anamnese, como retroprojecção do sujeito à imagem do pensamento do teólogo, em que o centro repousa em toda a parte e em parte nenhuma. 1
Finalmente, não posso deixar de pôr em relevo a coragem deste livro ao assumir literalmente a função provocatória e contestatária da literatura sem o disfarce da alegoria e sem a má-consciência da alegria. Da base ao vértice da pirâmide do nosso sistema democrático, quase tudo é apanhado em flagrante. Mas atenção: longe de se pretender uma crítica à democracia, Memória delta envolve e desenvolve uma sátira dos costumes democráticos marcada por um ponto de vista ideológico intrínseco a uma ética do humano e da cultura e alheio às ideologias político-partidárias proliferantes. A democracia é concretamente perspectivada, à luz de uma implícita etimologia poética, não como “poder do povo” mas como escudo do demónio do Poder. O autor chama as coisas pelos nomes, depura os nomes de uma semântica mítica que a nossa consciência democrática já assimilou e que os diversos discursos sociais, políticos e politológicos já mais ou menos naturalizaram. Com mesura, sem censura. Sem aquela censura que os espíritos do éter democrático não impõem mas intimamente supõem. Por isso Memória delta é também uma grande aventura de António Cabral. 2
Um livro corajoso, uma escrita ágil e digressiva, mas coerente, com uma constante mudança de planos narrativos, onde não falta o humor, a sátira, a sensualidade, a paródia, o pícaro (talvez uma das maiores novidades deste romance), a denúncia dos jogos sub-reptícios do poder (local e central), e onde o acaso e as máscaras da sedução parecem destruir o destino de uma viagem – metáfora dum projecto humano e/ou dum país que se compraz em limitar-se a si mesmo.
Por maior que seja a distância estético-literária e temporal, julgo que um paralelo entre este inteligente e moderno romance e as Viagens na Minha Terra de Garrett se tornaria frutuoso.
Um livro necessário, a exigir uma atenção urgente da sociedade e da crítica literária portuguesas – ambas nem sempre atentas àquilo que mais nos diz respeito… 3
- MENDES, Teixeira – “Memória delta” algures a nordeste. Primeiro de Janeiro. Porto. Ano CXXII, n.º 76 (17-03-1990), pag. 26 ↩
- CARLOS, Luís Adriano – António Cabral ou os deltas da ficção. Jornal de Notícias. Porto (6-6-1990), pag. 15 ↩
- MARTINS, Francisco – Memória delta. Letras & letras. Porto. Ano III, n.º 31 (Julho de 1990), pag. 17 ↩
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