UM HOMEM EMBRIAGA-SE
quando tem muito que dizer e pouco ou nada que fazer. Pelo menos nesta aldeia é assim. Entra ele em casa, olé, rosas por todo o corpo, aproxima duas cadeiras e diz à mulher: estou bêbedo. Ela obedeceu. E uma osga, toda olhos, suspendeu a travessia da cal.
EU QUERO PEDIR À EMBRIAGUEZ QUE ME FAÇA ESQUECER QUE NUNCA SABEREMOS NADA
– disse-o Omar Kahayyám, poeta persa do séc. XII. A razão perde-se no labirinto e só o coração irá encontrar a saída. No antes e no depois foi sempre assim, mau grado a sabedoria dos juízes, sejam eles quais forem. Que é como quem diz: o coração tem razões que a razão desconhece.
QUE SABEDORIA
é a não sabedoria? E o amor, ó Salomão do Cântico Maior, se também é verdade: OS TEUS SEIOS SÃO MAIS DOCES DO QUE O VINHO? Ou a verdade conjunta: VINHO E O TEU ALAÚDE DE CORDAS DE SEDA, Ó MINHA BEM-AMADA? – ainda Khayyám. A verdade evola-se neste perfume.
O VINHO
é um modo de ser de quem perdeu um modo de ser. Entra-se num pardieiro e as mãos acariciam as paredes das Capelas Imperfeitas – nada te salvaria se não desses a mão à ilusão, percorrendo o mundo dentro de ti próprio, impedido que estão de o saber.
A OSGA TEM UNS OLHOS MARAVILHOSOS
A despeito disso, é repelente. Aquela mulher e aquele homem ouviram-na, quando faziam amor antes de nascer o sol. O vinho no Douro, este ano, é muito, lá isso é, mas vende-se ao preço da chuva. Está a chover, homem, vamos para o quintal, ao menos toma-se banho de borla.
DESCERAM AS ESCADAS
até à chuva. Nas rosas vermelhas do patamar ia-se extinguindo o lume em trânsito pontual para o coração da ramada próxima.
À NOITE, ELA,
que tinha bebido um copito a mais, propôs ao marido que não saísse e fechasse mesmo a televisão: poupava-se energia e aquilo tresandava a futebol de ricos em todos os canais. Não demorasse a ir para a cama. Prometia-lhe o reino celestial enquanto diabo esfrega um olho. Alaúde de sedas.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.