É assim que lhe chamam em Cheires (concelho de Alijó): Pai da Carne – um grande boneco de palha e trapos, com um falo monumental. A festa acontece na noite de Terça-Feira Gorda e é um dos luxos da rapaziada, um luxo que no fundo é um ato de expansão instintiva onde rumoreja um simbolismo que deve ser analisado.

Os rapazes – um de padre e outro de sacristão – juntam-se e percorrem as ruas, gritando: ai o meu Pai da Carne, coitadinho, que vai morrer. Isto e muito mais. À luz das velas e toque de campainha, a gritaria assume grotescamente acentos patéticos. E assim o préstito vai-se dirigindo para o largo principal onde os automóveis, que circulam na estrada que liga Sanfins do Douro, Ponte da Ribeira e Sabrosa, têm mesmo de parar, o que aliás parecem fazer com muito gosto: máquinas modernas, algumas porventura de pulmões envelhecidos, a contracenarem com a máquina mais antiga que se conhece, um homem de pistão à vista, um animal que pelo visto é inteligente, exibindo os seus direitos num gesto impenitente de orgulho. Os gabirus é que não querem saber. O homenzarrão é sem dúvida um velho gaiteiro que já deu o que tinha a dar, precisando aquele frenesim carnudo de tratamento igualmente frenético. O que quer dizer que mesmo à beirinha da Quaresma – tempo de olhar para dentro, pois – não se admitem foras daquela natureza.

Dantes era no adro da igreja que se procedia à execução da sentença, mas por motivo de confusões e alguma advertência do pároco, juntamente com a de senhoras mais sensíveis a desvergonhas – os santinhos não podem ser incomodados no seu recolhimento, está visto -, a função transitou mesmo para o olho da rua. O Pai da Carne, impante ainda de ímpetos secretos, é em primeiro lugar amachucado, atirando-o os rapazes uns de encontro aos outros, tocando-lhe bem os arcos, a ver se o fulano se deixa de arrebitadelas. Como não, pespegam com ele na calçada e encafuam-lhe bombas de estouro de rabear no corpanzil. O primeiro órgão a ser destruído é o sexo. Ai o meu Pai da Carne, coitadinho, coitadinho! A fúria justiceira aliada ao lamento hipócrita. E a algazarra não abranda, enquanto o matulão não arder completamente.

Só homens na funçanata. Ausente qualquer pessoa do belo sexo, ora pois, com receio de galhofa e mordacidades. Algumas até gostariam de ver, ora pois, mas preferem ficar-se por outras brasas, as da lareira, ou então a bispar a coisa atrás dos cortinados de renda.

Concluindo, será legítimo ver neste costume carnavalesco a morte freudiana do pai? Ou simplesmente um adeus folgazão à carne que uma imposição quaresmal de abstinências contém? A destruição do sexo paterno no alvorecer da nova primavera, faz pender a razão para a psicanálise de que aqui tem cabimento a fantasia como satisfação simbólica ligada ao edipianismo sublimado como festa. Disse Freud: “Um dia os filhos associaram-se, triunfaram do pai, mataram-no e devoraram-no em comum, ele que tinha sido seu inimigo, mas também seu ideal.” 1

  1. in Ma vie et la psychanalyse. Gallimard: Paris, 1928
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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