Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
Se há momentos serenos como lagos
inundados de sol,
também há a seiva escura,
infindável e escura, de muitas horas
que cansam e fazem doer a alma.
Há longas esperanças que, depois
de levarem o melhor dos nossos sonhos,
desabam de repente.
Há o fracasso, o desânimo
e a insegurança de tudo quanto nos vem às mãos.
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
Luta-se muito, temos de lutar,
todos os dias, por qualquer coisa,
qualquer coisa que acaba por nos fugir,
como se a vida se reduzisse
a um puro jogo das escondidas,
como se nos criasses apenas
para te servirmos de passatempo.
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
Por isso, muitos corações
se vão assemelhando a pequenos pântanos
onde se desenvolve o limo da melancolia
ou a serpente do desespero.
Por isso as árvores do sonho
mal conseguem dar frutos
e os poucos frutos
deixam nos lábios um sabor a fel…
Não é fácil, Senhor, a vida que nos deste.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.