Professor que sou, fiz há tempos o plano de uma visita de estudo à Mezinha de S. Sebastião, em Couto de Dornelas no concelho de Boticas, visita que também podia efectuar-se aos lugares de Samão e Gondiães que ficam ali perto, já no Minho, onde o costume secular do dia 20 de Janeiro é quase em tudo semelhante. Pensava e continuo a pensar que entre as actividades escolares programadas no início de cada ano deve figurar o conhecimento “in loco” de tradições populares, proporcionando-se às turmas, que não tiverem essa oportunidade, textos, exposições ou registos audiovisuais sobre a matéria. De resto a Lei de Bases do Sistema Educativo, de 14.10.86, consigna no artigo 48 que “as actividades curriculares dos diferentes níveis de ensino devem ser complementadas por acções-actividades de complemento curricular de âmbito nacional, regional ou local – directamente orientadas para o enriquecimento cultural e cívico, a educação artística e a inserção dos educandos na comunidade”.
Não é este o espaço adequado para a análise do que tem sido feito e dos meios postos à disposição das escolas para que tal objectivo se concretize com a eficácia devida, pelo menos com alguma. Mas sempre se poderá dizer que as escolas portuguesas têm sensibilidades e ritmos diferentes e que, por falta de capacidade material e financeira, vêm deixando ao desamparo projectos sobre projectos que se amontoam por gavetas e prateleiras. Valham-nos alguns trabalhos, que inclusivamente têm vindo a lume e resultam na maioria dos casos da generosidade e da pertinácia magoada de alguns professores que, não raras vezes, prometem a si próprios não se meterem mais em alhadas dessa natureza, tais são as carências, ausência de estímulos, objectivos e condigna avaliação final. Deixe-me eu porém de lamúrias e exare aqui o planozinho feito que, se outra utilidade não tiver, terá ao menos a de chamar a atenção para um costume de inegável beleza. Limito-me aos aspectos culturais, pondo aqui de lado, como é natural, o que respeita a formalidades administrativas.
1. Justificação da visita
Trata-se de uma festa secular que conserva uma das mais típicas tradições da Região de Trás-os-Montes e Alto Douro e se realiza anualmente em Couto de Dornelas. A população é muito religiosa, como aliás a de toda a sub-região de Barroso onde se inclui não só Couto de Dornelas (Vila Grande) mas o concelho de Boticas a que pertence. À expressão propriamente cristã associa-se o sentido comunitário de entreajuda, nela ecoando ainda, ao que parece, um velho ritual pagão de comensalidade festivo-propiciatória.
2. Objectivos
- Participar numa festa popular, sentindo as raízes mais profundas da gente transmontana;
- conhecer através da experiência a importância dos usos e costumes da nossa terra;
- aproximar cada vez mais a escola do meio a que pertence, através de contactos frequentes com as populações;
- aprender o que há de verdade e autenticidade nas manifestações populares, como norma para o sentido das actividades culturais;
- e estudar as relações entre a história da comunidade e o seu meio geográfico, tendo em especial atenção as crenças que devem ser respeitadas.
3. Breve descrição
Destina-se a festa a invocar os favores de S. Sebastião, padroeiro contra a fome, a peste e a guerra. Esta aldeia, onde abunda a pecuária, pensa sobretudo na peste que em anos maus lhe dizima os animais domésticos. Muito cedo, ainda o sol não rompe, já as pessoas que constituem a Comissão da Festa se juntam para porem ao lume grandes panelões, a fim de aí serem cozidos arroz e carne. O arroz é separado da carne. Podem ver-se em grande loja térrea, a um canto, longas filas de broas de centeio ou de milho. Tudo recolhido de porta em porta e muito abundante, pois os comensais prevêem-se às centenas, entre naturais da freguesia e forasteiros. Antes do meio-dia, é rezada a missa de S. Sebastião na igreja local. Já ao longo da rua se estende uma compridíssima mesa, feita de mesas sucessivas, com mais de trezentos metros, onde sobre toalhas de linho será servida a mezinha (medicina ou remédio, porque de remédio se trata na crença popular). Sabe-se que a palavra mezinha vem do latim medicina(m) através das formas medicina e meezinha. Quem da aldeia e das proximidades não participar sujeita-se a doenças no gado, conforme o pensar tradicional que também aconselha a levar um pouco de pão todo ele benzido por um sacerdote para casa como preventivo e remédio contra os males. De notar que a participação na comensalidade é livre e gratuita, que os pratos são de madeira, alguns já seculares e que as bebidas terão de ser levadas pelos participantes. 1
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Em Salto (Montalegre) é no largo da igreja que se realiza a festa. Estive lá em 20 de Janeiro de 1997, já o comes-e-bebes ia no meio. Chuviscava. Qual quê!: era uma água solar. “Pegue daí uma lasquinha de bacalhau para acompanhar o pão” – ofereceram-me. “E beba-lhe. Olhe que isto aqui é tudo sagrado.” Num camião havia duas pipas e quatro bons pipos de vinho. Que voaram. Foguetes. Alegria.
De Carlos Moura, natural de Cerva (Ribeira de Pena) acaba de me chegar um relato da mesma tradição marcada por outras características que se mantêm com pequenas diferenças em muitas aldeias e vilas serranas, especialmente nas que partilham os lugares onde o Minho se encontra com Trás -os-Montes:
“Todas as pessoas (quem tem fornos a lenha) fazem uma ou duas broas de pão de milho. Depois, em cada aldeia enfeitam uma carroça de um tractor com verduras (loureiro, trepadeiras, etc.), isto no dia anterior ao de S. Sebastião. No dia deste, cada aldeia traz o seu pão para a igreja. É celebrada uma missa e o pão é benzido. No fim da missa todas as aldeias fazem um desfile com suas carroças enfeitadas. Mas, como os que vivem em Cerva (centro) não têm fornos a lenha nem carroças de tractores, compram o pão ao padeiro e o padre benze-o e depois na rua principal vendem-no às pessoas que o queiram comprar.” ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.