A Leonor continua descalça,
o que sempre lhe deu certa graça.
Pelo menos não cheira a chulé
e tem nuvem de pó sobre o pé.
Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.
Um filhito ranhoso na mão,
uma ideia já podre no pão.
Meia dúzia de sonhos partidos,
a seus pés, como cacos de vidros.
Diga lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.
“O vilancete “Descalça vai para a fonte” de Luís de Camões (séc. XVI), no qual o poeta realça a beleza da mulher, Leonor, considerada “mulher petrarquiana” pela brancura angelical do seu rosto emoldurado de cabelos dourados, pela graciosidade do seu corpo, pela espiritualidade que irradia, dá o mote, em 1963, ao poeta António Cabral que dá vida a uma outra Leonor, uma Leonor descalça, preocupada com os filhos, também ela formosa, sonhadora, mas com uma angústia incerta no futuro “Virá o dia em que os pés / não sintam a terra dura?”.
Este poema revelador de preocupações sociais leva o cantor de combate, Francisco Fanhais, a adoptá-lo no seu L.P. Canções da Cidade Nova, editado nos finais da década de sessenta. Passados alguns anos, António Cabral traz de volta a sua Leonor que já não vai à fonte, mas continua descalça, sonhos partidos, lutando pela sobrevivência, com o filho ranhoso pela mão. É com esta Leonor que o grupo Xícara, empenhado em homenagear, musicalmente, os poetas de todo o país, nos surpreende com a sua música e voz melodiosa da vocalista.
Cremos veementemente que a mensagem será levada a toda a mulher, sendo ela formosa e sonhadora, mas também lutadora e perseverante. Que nunca ela se venda por um simples par de chinelas.”
– Alzira Cabral 1
- in prefácio ao tema “Leonor” dos Xícara ↩

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.