Lendas mouras do monte de S. Leonardo

A ponta de rochedos que é o morro de S. Leonardo, em Galafura, debruçado sobre o grande vale duriense, presta-se a que ali florissem lendas de mouras encantadas, cerzidas umas nas outras e afins das que pululam por toda a região. O que as distingue é constituírem um conjunto harmonioso e pitoresco, ligado ao efeito de surpresa num fundo maravilhoso onde se fazem eco os anseios da vida, duma outra vida como ela é sonhada.

Aida Coimbra fez uma recolha em livrinho que me ofereceu há já uns quarenta anos e foi impresso anonimamente e sem data na tipografia Artística de Vila Real. O eixo central é o de uma gruta, subjacente à capela de S. Leonardo e vigiada por temíveis dragões, que vai ter a uma caverna, “palácio fantástico, todo forrado a ouro em chapa, com um tronco todo cravejado a pedras preciosas, onde se encontra adormecida a linda e graciosa D. Mirra, menina encantada por seu Pai, um dos mais ricos mouros que estiveram em Portugal e talvez na Península” (texto 5). Os relatos, todos eles muito breves, são dez, seguidos de uma historinha centrada na lenda de D. Mirra, destacada assim como alvo principal das atenções.

O texto 6 suscitou especialmente o meu interesse por me lembrar um episódio de outra moura encantada, a do Vale de Maria, em Castedo do Douro, que me remete à infância. Ora a lenda de S. Leonardo é semelhante. Ei-la: “Uma bela noite, certo homem ia para um dos armazéns que antigamente existiam para os lados de S. Leonardo. Ao dar a meia-noite, viu, estendida ao luar, uma manta coberta de figos como se estivessem a secar. Naturalmente apanhou uma mão de figos e meteu-os ao bolso. No armazém, para acompanhar um copo, tirou os figos e saíram-lhe umas tantas moedas em ouro; e ouviu uma voz: “A manta de figos eram moedas em ouro que D. Mirra te destinava”. Voltou à procura da manta, mas nunca mais a encontrou”. Ora toma, que é para a gente perceber melhor que não é ao luar que os figos secam.

As historinhas do morro apresentam matizes bem curiosas e complementares, como:

“Um rei mouro encantou a filha com a seguinte fórmula: “Abre-te, fraga, aqui fica a minha filha até ao dia em que semearem linho sobre esta rocha, fizerem com ele uma toalha e sobre ela comerem um jantar”. Um pastor ouviu o rei e pôs terra na fraga, acabando por cultivar o linho e confeccionar uma toalha que lhe serviu para um jantar. A menina todavia continuou encantada, por ele não empregar bem a frase mágica. Ora toma que é para de futuro prestares melhor atenção ao que ouves.

Certa mulher encontrou uma menina que com atados de giesta embaraçava a passagem dos viajantes pelo caminho. Que andas a fazer? – perguntou-lhe. E a menina: para me desencantares tens de ir desatando as giestas que aí vês. Mas a mulher não conseguiu porque a menina era mais lépida que ela no seu afã. Ora toma, que é para aprenderes a caminhar.

Um aventureiro, sabe-se lá se apaixonado pela miragem da D. Mirra, foi tomar conselho aos mouros para desencantar a princesa e abornalar-se com os seus tesouros. Basta levares um pão de quatro cabeças e ofereces-lho, dizendo que lhe apresentas o seu desencante. O aventureiro pôs-se em campo. Como a caminhada fosse extenuante, manducou uma cabeça da broa. Nada feito. D. Mirra desiludiu-o: “Como poderei caminhar num ginete de três pernas?” E continua encantada. Ora toma: um homem não deve ser lambisqueiro.

No lugar das Lamas havia uma grande e estranha pedra que atraiu a atenção dum passante. Este consultou os sábios da moirama que o informaram do condão que a pedra possuía. Bastava, dizer-lhe: “Arco diabo vai para a tua terra”. E o desavisado, que acreditava em tudo o que lhe diziam, foi-se à pedra e repetiu o que ouvira. Caramba!, o calhau faiscou, voou e desapareceu. Se dissesse “Arco diabo vai para minha casa”, o calhau iria mesmo e, como era forrado a ouro, o homem ficaria rico. Ora toma: quem vê caras não vê corações.

Há quem diga que afinal os dragões que guardam a entrada da gruta são “dois rochedos que se aproximam como duas queixadas e trituram os ossos de quem lá for espreitar”. Põe-te a pau: as coisas que se assemelham são uma e a mesma coisa, como se vê na poesia. Ou tu não gostas de poesia? Põe-te a pau.

Um valentaças de Galafura meteu no bestunto que havia de desencantar D. Mirra. Consoante um sonho, teria de, à meia-noite, esperar numa encruzilhada um cavalo branco que o conduziria ao destino. Meu dito, meu feito. O cavalo branco, porém, só tinha três pernas e o nosso homem amoleceu. “Vinhas tão animado e tinhas tanta coragem e tens medo?” Ora toma: santos da porta não fazem milagres. Para não dizer, meu cagarolas: quem tem cu tem medo.

A menina que andava à lenha “viu uma cobra enorme com uma trança de cabelo que a cobria”. Ia fugir quando D. Mirra lhe disse que não tivesse medo. Fosse ter com a mãe e pedisse-lhe um bolo dentre o pão que estava a cozer e lho levasse, tendo no entanto de guardar segredo. Mirra gostava não apenas de jovens audazes, mas também de crianças. Ante a insistência da mãe, a menina acabou por dizer o que se passava, estragando tudo. Quando chegou com o bolinho, ouviu uma voz que a repreendia: “O que tu precisavas era que eu te furasse a língua com uma agulha”. Se não fosses bisbilhoteira, “conseguirias desencantar-me”. Aprende, cachopa: de futuro tem tento na língua. Pela boca morre o peixe.

O pretendente de D. Mirra e sua fabulosa fortuna terá de, à meia-noite em ponto, nem vírgula a mais nem a menos vencer os ferozes dragões que impedem a entrada na gruta e deixar-se beijar pela princesa “metamorfoseada em descomunal cobra”. Porra! Ya te las entiendo, S. Leonardo.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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