Jogar é um direito da criança

Série “ As Crianças na obra de Artur Pastor”. Porto, décadas de 50/60.
Série “ As Crianças na obra de Artur Pastor”. Porto, décadas de 50/60. Foto de Artur Pastor.

Nos princípios de Setembro de 1983, o alcaide de Corcubión (A Corunha) telefonou-me para eu dar um curso de cinco dias na Universidade Popular de Verão daquela pitoresca localidade galega (19 a 23 de Setembro de 1983). Que os jogos populares tinham dali praticamente desaparecido e que era preciso incentivar as crianças a retomá-los, pois se tratava de excelente manifestação cultural. Ele conhecia o meu vezo por estas coisas e convidava-me, tudo pago, etc. e tal. Antes de anuir que sim àquele que veio a tornar-se meu amigo, perguntei-lhe maliciosamente se tinha filhos ainda pequenos. Como ele me disse que sim, não perdoei. O senhor alcaide não lidava com as crianças, era talvez compreensível, os afazeres profissionais… mas os mais pequenos precisam de atenção, é preciso conhecê-los, estar algum tempo com eles, conviver, brincar. Eu iria, disse-lhe, e, embora não conhecesse as crianças de Corcubión, facilmente demonstraria o desacerto de um livro de Arturo Romani, segundo o qual o único jogo que restava naquela zona era o futebol, “que se pratica nas praias durante a baixamar”. Eu sabia então e hoje sei-o cada vez melhor que onde houver crianças tem de haver jogos, quer os adultos se apercebam ou não, quer os adultos facilitem quer não.

Fui a Corcubión, acompanhado de um animador cultural, e verifiquei in loco que as crianças sabiam muitos, mesmo muitos jogos. Praticavam-nos em casa e na rua, na praia ou num terreno abandonado. Os adultos é que… não lhes prestavam atenção. Quando, no fim do curso, organizámos uma festa de jogos infantis, pelas ruas, num cenário em que havia gigantones e cabeçudos, uma banda de música e foguetes, viam-se lágrimas nos olhos de alguma gente. E regressei – perdoe-se-me a vaidade –, satisfeito e preocupado. Satisfeito porque…, já perceberam, não digo o resto; preocupado, ao pensar que, por esse mundo de Cristo em fora, há crianças a quem de uma forma ou de outra se criam limitações ao desenvolvimento normal e saudável, por não beneficiarem de compreensão ou por se lhes negar o direito de brincarem. O alcaide de Corcubión é um homem inteligente, que inclusivamente participou nos jogos com um entusiasmo infantil, mas há tantos pais, educadores e autarcas – vá, empregue-se um eufemismo – desatentos! Mesmo altos responsáveis.

– Se os pivetes cagalhetes querem brincar, que vão para o parque infantil. Há um e bem azado aqui perto. Agora aqui, a fazer poeirada, a dar pontapés nas latas, aos encontrões à gente… Educação, meu caro amigo, o que é preciso é educação. À antiga. De pequenino se torce o pepino. O meu pai, que Deus tenha, deu-me algumas vergastadas e não é por isso que lhe quero mal. Ora o desaforo! Mas que marantéus estes diabelhos me saíram! Olhe para aquele: todo sujo, ranho à mostra, cabelo em pé, parece que viu os lobos… Então não era mais bonito andar asseadinho, pela mão da mãe, da criada ou lá de quem fosse? Há horas para tudo, não acha? Mas que ganapada! Olhe, canalha não falta: é por isso que o mundo não acaba. Mas, por este andar, com a falta de educação que por aí se vê, se não acaba, vai de mal a pior. No meu tempo, ah, no meu tempo, é como o senhor diz, também havia desacatos, sim… onde está o homem está o diabo. Mas havia uma coisa a que hoje ninguém liga pevide: autoridade. Autoridade, meu caro. Pois é: au-to-ri-da-de! Quando um saía do rego, zás, levava no coco. Ora, diga-me lá, se é que afinamos pelo mesmo diapasão: então não há horas e lugar certo para tudo? Comer, dormir… Olhe-me para aquele malvado: a fazer chichi, às escâncaras! E o outro, olhe-me o outro, ao lado dele.. Está a ver? Pelo visto, quer atirar o chichi para mais longe. Chama o senhor a isto jogo?! Olhem que esta!

Bom, esta fala que anda na boca e na massa encefálica de certa gente pode parecer um caso-limite. Será? Será mesmo? Que lhes parece aquela ideia de empontar as crianças para um parque infantil? Este é mesmo suficiente? Ou não tem nenhuma semelhança com uma reserva de índios? Onde hão-de brincar as crianças, se no lugar que onde vivem lhes ocuparam todos os espaços livres? E, mesmo que não ocupassem, é pelo recurso à autoridade ou com atento carinho que devem ser tratadas, desaconselhando um excesso, aconselhando atenção e prudência, por exemplo, contra a eventualidade de um atropelamento? É sensato dizer que as crianças devem estar sujeitas a um horário rigoroso? E, quanto a atitudes escandalosas, é justo aplicar à infância a bitola da idade adulta?

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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