Às vezes, os pais ficam muito surpreendidos porque deram ao petiz um cavalinho com rodas e ele, às duas por três, em vez de montar no cavalinho, encarrapita-se numa cadeira, pó, pó!, aí vai ele como o Ayrton Senna. Explicação: quando uma criança já não encontra qualquer novidade num objecto, abandona-o. Pode também acontecer que, ao abandoná-lo, transfira para outro objecto a sua função (a cadeira a servir de cavalo) ou uma função associada (a cadeira a servir de automóvel). A própria cadeira passa a ser cavalo ou automóvel, porque a criança já não vê nela nada de novo, porque tudo nela é redundante. Como se dissesse (palavras de Hutt): «que posso eu fazer com isto?» É esse o receio de certos pais, ao arquivarem a bonecada: é que a menina, enfastiando-se de certa boneca, pode virar-lhe a cabeça para trás, virar, virar, puxar, até arrancá-la. Também o Ayrton Senna não se ensaia nada para se pôr às marteladas ao cavalinho e fazer dele um bombo ou um monte de pedaços para o lixo. Às vezes, intervêm aqui factores de outra ordem, como a agressividade, pois «isto anda tudo ligado». Dizia Baudelaire que a maioria das crianças quer ver a alma dos brinquedos e é por isso que as destrói. Mas onde está a alma? – pergunta. É aqui que começa a tristeza, comenta o grande poeta francês, chegando às portas de uma filosofia que não pode deixar de pôr o problema da inquietação e da aventura humanas.
Como não vou fazer deste texto nenhum manual prático de orientação de crianças (onde está ele?), passo ao caso 2, só para dizer: Minhas senhoras e meus senhores, ao arranjarem a casa ou o jardim, um pátio que seja, pensem num espaço para os filhos. E olhem que o quarto do bebé não é nenhuma vitrina destinada às visitas.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.