Homem-farrapo, sejas tu quem fores,
Até na sepultura, estou contigo.
Abjuro o meu egoísmo e hoje, ofereço-te
A inviolada ternura desta página,
Magra flor, mas consciente, do meu cérebro.
Homem-farrapo, olhado e abandonado
Como um farrapo sórdido. Apareces
Na chuva ininterrupta das notícias,
Criado e recriado, a toda a hora.
Farrapo, sim: o que é um homem
Na cela dum aljube ou dum asilo?
Mas eu não te desprezo. Mão que não
Pode traçar um gesto independente,
Coração retorcido pela dor
De não ser o que os outros ultrapassam,
Ossos cantando fúnebres na pele…
Mendigo fedorento, velho inútil,
Soldado ludibriado, acorrentado,
Irmão negro, afastado como um cão.
Não te desprezo irmão, doido que sejas,
Pecador de olhos fundos como a noite,
Canceroso, leproso ou criminoso.
O teu retrato é o da mulher adúltera
E Deus o iluminou dentro da areia,
Enquanto os grandes, todos, debandavam.
Não te desprezo. E, nunca, as minhas mãos
Soltem a pedra: contra mim seria.
Homem, homem-farrapo, tu ensinas
A lição enigmática da vida.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.