Amaruchar amarucham
Um dia, iam de uma aldeia para outra e sentiram fome. Viram um portuguesito que estava a varejar umas nogueiras e lá lhes pareceu que eram pessegueiros. Regulavam mal da cabeça, tal a larica e a sede que deles se tinham apoderado. O mais afouto e reguila, o tal que contava os outros e não se contava a si, atreveu-se a pedir alguns pêssegos para ele e para os compañeros.
– Por favor, patrón. Dios le pagará.
O portuguesito espreitou o furo e descobriu uma oportunidade de descascar as nozes sem qualquer trabalho da sua parte. E disse:
– Muito bem. Ides encher a barriguinha dos melhores pêssegos que há no mundo e arredores. Nunca os ireis esquecer. Acreditais?
– Acreditamos.
– Ora vinde. Tendes aqui dois cestos cheios e ali outros dois ainda vazios. Podeis comer à vontade, mas com uma condição: papais a polpa sumuda, tanta quanta quiserdes, mas os caroços deitai-los nos cestos vazios, que é para eu os voltar a semear. E o que é certo é que os galegos, que já só viam pêssegos à sua frente, caíram facilmente na esparrela. Puseram-se então a manducar desalmadamente e comentavam, fazendo carantonhas a cada dentada:
– Amaruchar 1 amarucham, mas pêssegos son.
A raposa
A paparoca deu-lhes para se endiabrarem e, quando já iam nas andadeiras, atoparam à beira do caminho uma raposa morta e entourida. Miraram-na bem, miraram, e deu-lhes para descarregar sobre ela as fúrias e desnortes provocados pelo sumo azedo que lhes ardia no estômago, tanto mais que a raposa, inchada como estava e peludeca, lembrava-lhes um bombo da festa dos Lázaros em Verín. Travou cada qual de seu palo e zabumbaram nela forte e feio. A cada pancada, a salta-pocinhas ora se virava para um lado ora para o outro, saltando mesmo ao ar. E eles enraivecidos:
– Reviva que não reviva, levar há-de as levar.
Um mal nunca vem só
Redra de borla
Foi quando o reguila teve a ideia de se dividirem em três grupos a que deram os nomes de Grupo de Baixo, Grupo do Meio e Grupo de Cima.
O Grupo de Cima rumou a um povoado encavalitado na montanha onde decorriam os trabalhos da escava, serviço que consiste em abrir uma meia cana ao longo de cada bardo de videiras, a fim de aliviar estas de ervas daninhas e facilitar a adubação, com a terra mais permeável à chuva. Um lavrador contratou o grupo que, uma vez executada a tarefa, quis receber logo o dinheirinho. Como o lavrador se escusasse do pagamento imediato, alegando que só depois de vender o vinho é que estava em condições de o fazer, a malta reuniu-se e, depois de acalorada discussão, deliberou o seguinte: pegar cada um de sua enxada, irem todos à vinha do espertalhão e desfazerem a escava. Isto, passados meses, já na terra crescia o farto ervaçal de Abril. A sede de vingança era grande e meteram mãos à obra. O lavrador soube, foi ver de longe e esfregou as mãos de contente.
– Olha, olha: estão-me a fazer a redra de borla!
A azeitona
O Grupo do Meio foi dar a uma aldeia em cujos terrenos ladeirentos abundavam olivais. Facilmente encontrou patrão que, mirados e remirados os farsolas, logo propôs trabalho no varejo das oliveiras e apanha da azeitona. Que sim-senhor, anuíram imediatamente. O mês de Dezembro corria friorento, com algumas rajadas de vento que faziam cair a azeitona, a qual, uma vez no chão, ficava cozida e recozida com a geada. Apenas chegaram ao olival, nuestros hermanos, porque tal azeitona lhes abria o apetite, começaram a manducá-la como viram fazer aos tordos,
– e estes bem gordinhos e ligeiros que andam.
O patrão, que não era trouxa, interveio, recomendando que comessem à-vontadinha, mas deixando cada um seu montinho de carunhas em cima de uma lájea. E eles, agradecidos:
– Prò céu vá o fidargo 2.
Ao fim do primeiro dia de labuta, o dono saiu-se-lhes com esta, cofiando a barbicha:
– Bom, temos de fazer contas.
Olhou para os montículos de carunha e disse:
– Segundo os meus cálculos, vós ainda me deveis dinheiro, pois cada azeitona vale um tostão.
E eles meio azoinados:
– Prò inferno vá o fidargo.
E desandaram com o rabo entre as pernas.
Cachaplim plim
Desciam por um caminho de cabras e assomaram a um fragão donde se contemplava, a meio da encosta fronteira, um povoado que lhes chamou a atenção. Fosse da graça que acharam a tanta janela e cal reluzente, sinal de conforto, fosse da grandeza que respirava o solar duma quinta, mais abaixo, decidiram romper o acordo de trabalhar para o fidargo das azeitonas e puseram-se em marcha para a outra banda. Quem se muda Deus o ajuda, ora pois.
Ao chegarem ao rio, viram um barco e um deles gritou ao barqueiro que fosse buscá-los depressinha,
– si non…
– Se não?! Se não quê, seu galego?
– Si, non… quedamos por acá
– Ah!
E partiram, tendo de pôr os tlíntamos a dobrar por causa da urgência. Já no outro lado foi o bom e o bonito. Queria o homem do barco marcá-los, antes de regressar, e arremessou contra o mais chibante uma joga do rio que lhe foi bater em cheio na tola. Aferroados, os galegos ripostaram, pegando no que por ali tinham à mão: torrões de lamiça que primeiro boleavam, disparando-os em seguida.
Ora à noite, os galegos contaram na taberna que os bólides iam direitinhos à fucinheira do portuguesito,
– cachaplás, plás!,
deixando-lha tão preta como a dum carvoeiro.
E, durante a ceia, o portuguesito contou à mulher que na refrega apanhava as jogas da margem, umas reboludas, outras esquinudas, certeiras como zagalotes, atirando-as à testa de cada um dos bisnaus, a qual ficara em papas e a esguichar sangue.
– Cachaplim, plim. Era cacho como nabo.
A rata sábia
O Grupo de Baixo ficou-se por uma quinta à beira-rio onde, de oito em oito dias, passava o barco rabelo da carreira que levava e trazia o correio. Quando, uma noite depois da ceia, estavam num terreiro a dançar a muiñeira, apareceu o feitor a entregar uma carta a um que se chamava Cortes, Xosé Cortes. Este leu, releu e começou a dar pulos de contente.
– Tenho mais um hijo! – exclamou.
Então um dos compañeros abeirou-se com passinhos calculados, tocou-lhe no ombro e disse-lhe à puridade:
– Ó boizana, tu estás aqui, passa dum ano, a tua mulher tem um filho e não dás conta que o filho não é teu?
– Como no? Então quando uma vaca tem vitelos estes não pertencem todos ao dono da vaca? Deixa-te de malandrices. O que tu tens é dor de cotovelo – concluiu, pondo-se a dançar ao toque da gaita de foles.
Ninguém teve coragem de se rir. Este Xosé era um pobre diabo, um bom-serás que não se metia com ninguém e gostava de dar uma ajudinha fosse a quem fosse. Todos no grupo o estimavam, tendo às vezes pena dele. Contava-se que andava há muito tempo desejoso de vir trabalhar para o Douro e, se mais cedo não veio, foi porque a sua mulher se opusera. Mas, como o tempo dá mais voltas do que um cachorro ao qual o rapazio chega aguarrás ao traseiro, a mulher começou a amaciar e um dia quase o impontou. A carta sobre o nascimento de mais um hijo dá a entender alguma coisa.
Contudo nos tempos em que a mulher precisava mesmo do marido e lhe bombardeava os ouvidos por dá-cá-aquela-palha, vinha ele um dia de Verín onde alguém lhe metera dentro bichinho luzidio e disparou, logo à porta de casa, na sua inocência tão límpida como sonhadora:
– Vou-me até ao Douro ganhar rios de dinheiro.
– Vais aonde? – perguntou a cara-metade.
– Ao Douro, para as vinhas, que agora é tempo das escadavadas 3 e lá pagam a bom pagar.
– Quem to disse?
– Disseram-me. Não te metas. Vou com uma roga. Amanhã ao meio-dia temos de nos juntar em Chaves.
E a mulher, que não era maldosa, não senhor, moendo e remoendo girassóis:
– Pois vai, seja feita a tua vontade, mas desde já te aviso: os caminhos andam cheios de ladrôes. E se te roubam? Se te roubam o saco da merenda e ainda por cima tens de beijar o cu ao ladrão? Pode ser. Pode ser.
E o Cortes empertigado, cheio de luas:
– Já te disse: vou ganhar muita bagalhoça para ver se a nossa casa arriba.
A mulher cedeu. Logo de madrugada, o marido partiu com um lódão enfiado num saco sobre o ombro. Pouco depois ela saiu também, vestida de homem, seguindo por um atalho. Percorrida obra de meia-légua, o Cortes tem um mau encontro.
– Ponha já no chão o saco e o fueiro – bradou-lhe um corpanzil encapuzado.
Ele obedeceu, claro.
– Mas…
– Nem mas nem meio mas, seu vagabundo, ganancioso e homem sem vergonha. Volte para ao pé da sua mulher, que é aí o seu lugar. Mas antes – disse o encapuzado, baixando as calças, – antes, faço-lhe o favor de me dar um beijo no cu. Venha depressinha.
E ele obedeceu novamente, desta vez sob a ameaça de um marmeleiro. Até lhe parecia que era o marmeleiro a falar. Ao beijar o cu ao figurão, não é que este lhe descarrega uma trovoada de ventos mal cheirosos?!
E assim teve de regressar. Já em casa, a mulher recebeu-o sorridente.
– Então?
Foi obrigado a contar. Sucedera, tintim-por-tintim, como ela tinha previsto. Almoçaram e acalmaram. A Xosefa, de quando em vez, dava uns suspiros consoladinhos. Aí ele começou a ficar desconfiado. Até que a rata sábia confessou. Fora ela que se lhe atravessara no caminho. Ela, sim, conduzida pelo Anjo da Guarda. Então ele, com uma candura sonsinha, concluiu:
– Bem me pareceu, mulher, que aquele peido cheirava às berças da nossa horta.
in Douro – Estudos e Documentos, Outubro 2004
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.