Habituei-me à ironia

No comboio. Da série Portugal (1968-69), por Neal Slavin
No comboio. Da série Portugal (1968-69), por Neal Slavin

A Carlos Loures

Habituei-me à ironia naqueles anos limosos que precederam o 25 de Abril e, não sei se por hábito, se por que é, dou comigo a escrever umas coisas desagradáveis. O hábito é uma segunda natureza — afiançam velhos moralistas. Viver numa pequena cidade não era então nada fácil. Triunfavam os oportunistas que engravatavam estúpida e sobranceiramente a sua mediocridade e nos iam oferecendo uns bichosos favores. Alguns amigos enojados desertavam para uma grande cidade mais ou menos anónima onde sobrepunham os tijolos da frustração para construir um espaço habitável. Outros ficaram, molhando as côdeas permitidas na sua raiva silenciosa, na sua coragem vigiada ou perseguida, na sua ironia. Habituei-me a isto.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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