Foi de facto numa roga

Sande (1989), por Georges Dussaud
Sande (1989), por Georges Dussaud

De seu nome Francisco Alexandre Lobo, o caseiro viera para a quinta numa roga de montanheiros dos lados de Jales. Na sua terra, a Cerdeira, tinha assistido à debandada dos rapazes da sua idade, desejosos de vida mais limpa, a governarem agora a vida na França e outros países onde o dia, dizem eles, só tem vinte e quatro horas. Assistiu a isso, enquanto se atolava nos leiros e olhava as estrelas, antes de romper o dia, umas cabras que se lhe punham a chocalhar a luz na testa como o rapaz da campainha à frente dum enterro. Vivia numa casa térrea, só com a mãe e o pai, dois tropeços resignados, e em Agosto ouvia o irmão, que regressava da estranja num bom automóvel e já tinha dinheiro para mandar fazer uma casa e comprar umas courelas para milho e batata com fartura, além de uma pipoca de morangueiro.

– Queres tu vir comigo, ó Chico? És um casmurro. Arranjava-te lugar na pedreira, em Cahors. Arranjava mesmo. Deixa lá o pai e a mãe, que não se perdem. Com nós dois a mandar-lhes umas massitas, de quando em quando, olha que até podiam comer vitela, todos os dias.

Francisco olhava-o com olhos pingões, engulipava o rosé espumoso que ele trouxera, entre outras coisas de brilho e cagança, e respondia-lhe com um sorriso mais de dentro do que de fora, ele que continha habitualmente os sorrisos, tolhendo-os de exuberâncias e rasgos palradores, sempre uma vara pronta no íntimo a enxotá-los, que nada adiantavam fingimentos e cara alatada a quem de há muito tinha fixado a própria bitola e domesticado sonhos e ideias a andarem numa determinada direcção. Gostava do Zé, admirava-lhe o talento e a audácia, aquele sentido da aventura que o embriagava e – temperado pelo orgulho de não ceder a reparos alusivos à humilhação de dobrar constantemente a cerviz ante senhores de outra cultura, senhores que se banqueteavam nos salões com iguarias que lhe eram vedadas, a ele e a outros como ele, que num quintalório, ao lado da casota do cão, cultivavam meia dúzia de couves galegas, les choux de vaches, como os tais senhores malevolamente diziam, – se mantinha, apesar de tudo, porventura alentado com vinte diazitos de férias anualmente colhidas e onde desfalcava, em tainas e ostentação, algum do cabedal que o justificava. Ele, Francisco, não nascera para ser um monta-cargas, fosse de quem fosse, e para amealhar uns tostões não estava disposto a deambular pelas ruas de uma cidade estranha, como um cão vadio, a dormir num camião abandonado e a levar couces de um capataz que tanto distinguia nas raças como nas nacionalidades. Isto o que ouvia dizer e lhe ressoava constantemente nos tímpanos. Quando servisse um patrão seria um da sua língua, que o entendesse bem, que nele confiasse, que lhe confiasse, se necessário, pois lha defenderia tão bem como os antigos aos castelos.

Ele, Francisco, não nascera para ser um monta-cargas, fosse de quem fosse, e para amealhar uns tostões não estava disposto a deambular pelas ruas de uma cidade estranha, como um cão vadio, a dormir num camião abandonado e a levar couces de um capataz que tanto distinguia nas raças como nas nacionalidades. Isto o que ouvia dizer e lhe ressoava constantemente nos tímpanos. Quando servisse um patrão seria um da sua língua, que o entendesse bem, que nele confiasse, que lhe confiasse, se necessário, pois lha defenderia tão bem como os antigos aos castelos.

Orgulho? Orgulho, sim, neste homem atarracado e bravio, que – dizia-o, às vezes – não admitia que lhe fizessem bulir a passarinha. Como daquela vez na festa da Vreia. Desabafava com o Zé, depois de muito instado, e porque este não se calava enquanto não lhe dissesse como tinha feito aquele galo na cabeça. Mesmo assim, foi de poucas palavras. Estava a conversar com a Aninhas, e o Manel Bica, da Quintã, o zarolho, conheces, abeira-se todo fanfarrão e convida-ma para ir dar uma volta. Ela, tá-te, e ele a pôr-lhe a pata no braço, a puxá-la. Filho da puta. Ó Zé, tu que fazias? Preguei-lhe um sopapo que ele deu meia volta no ar. Juntou-se gente: foi o que lhe valeu. Já eu e a Aninhas desandávamos, quando, à falsa fé, me veio com um pau. Ah catano, se não fosse o povo que ali estava a guardá-lo!

Poucas palavras, mas fortes, como os senhores leitores podem apreciar. O Zé disse-lhe:

– Se fosse por causa de outra. Agora por causa da Aninhas… Tu não gostas dela.

– Goste que não goste. Ali quem mandava era eu.

O Zé calou-se. Agora insistia:

– Anda daí, Chico. Olha que te estou a levar prò bom caminho. Aqui nunca sairás da cepa torta.

– Não vou, já disse. Enche-te de merda e não me chateies.

Bebeu outro copázio, cuspinhou a chatice, a chatice da vida, coçou as costas no escano, deu um peido descarado, entesou-se e foi regar a horta. Atrás de tempo tempo vem e, se não vier, puta que o pariu. Um home é um home e um bicho é um bicho. Ora. Vinte centos de cebolo era o que tinha no lameirito, uma belga rodeada de calhaus empinados onde pouco mais cabia do que o cebolo – lugar apenas para um talhão de pimentos e tomates e, a todo o comprimento do lado maior, um rego de abóboras, algumas já grandes como pipos, vou levar uma para nós e outra, aquela mais encorrilhada, para o reco. Deixa-me ver: há por aí muitas porretas já tombadas, estais a pedir arranca, é isso, não rego mais, só os pimentos e os tomates, também as abóboras que saíram melhores do que eu pensava, o ano passado foi só rama e estendal, não deram prà água e prò puto do trabalho, e olha que eu bem as estrumei, ainda melhor que este ano, é uma porra, quem lida coa terra nunca sabe o que vem de baixo, se o diabo se põe ao pé da raiz, adeus viola, é por isso que eu tenho a cruz de Maio naquela esquina, às vezes não adianta, mas outras vezes, como este ano, vá lá, o diabo é fistor, quando nos deixa à vontade é porque tem alguma ferrada nos tinteiros, que se cosa, eu nunca o vi nem quero, abrenúncio.

Se me der na real gana, há-de ser já este ano, numa roga, ir para o Douro, andar com os cestos às costas, como o gigante S. Cristóvão com o menino Jesus, encher-me de uvas, daquelas que são docinhas como o mel, comer sardinha da grande, cada uma de duas vezadas, rasga daqui, rasga dali, já está, agora um copo do bô, ó patrãozinho, bote pra cá a chelpa; avie-se. E as raparigas a rirem-se no meio das videiras.

Os quatro girassóis, um em cada canto do quadrado, riam-se a bom rir, cabeças derreadas com os murros do sol, mas matutos, olho vivo e perna amarela, uns farsolas. Deixai lá, meus descarados, que qualquer dia estais mas é no papo das galinhas. Esta ratoqueira é que me dá cabo da paciência, fura pràqui, fura pràli, toupeira do diabo que, se te apanho, faço-te em papas, vem a água pelo rego adiante e quando cai em lorga, adeus, leva logo sumiço, o que vale é que a poça, esta rica pocinha, tem muita, a Deus graças, ora deixa-me rilhar este ceboleco, parece enguiçado, se calha tem o diabo dentro, que tenha, vai à mesma, como-o e cago-o. Um girassol piscou o olho a outro, enquanto o Francisco metia o grabano na água, fazendo-o deslizar para um lado e para o outro, levemente, para conseguir afastar os ciscos e obter uma nesga limpa, um tentilhão que ali passava, de um castanheiro para o seguinte, suspendeu o voo, ao ver aquilo, a água remexida punha-lhe reflexos finos nos olhos e atraía-o, mas tinha mesmo de esperar, por causa daquele gajo que era mesmo menino para lhe acertar com uma pedra, os homens são tão maus. E Francisco já a beber, bebia, ah, és bem melhor do que a morraça que o meu irmão traz lá de Cahors, do cu de Judas. Olha ir com ele, hei-de ir, sim, mas para onde as pernas me levarem. Se me der na real gana, há-de ser já este ano, numa roga, ir para o Douro, andar com os cestos às costas, como o gigante S. Cristóvão com o menino Jesus, encher-me de uvas, daquelas que são docinhas como o mel, comer sardinha da grande, cada uma de duas vezadas, rasga daqui, rasga dali, já está, agora um copo do bô, ó patrãozinho, bote pra cá a chelpa; avie-se. E as raparigas a rirem-se no meio das videiras.

Foi de facto numa roga.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Ler mais…