Subimos aos calços mais altos em busca
dos figos pretos de que a mãe tanto falava.
A cor exerce em nós alguma atracção
que nos leva a desafiar
estes íngremes taludes onde ruíram
paredes e com elas as lajes salientes
que serviam de degraus. Escorregamos
na luz, de pedra, e as figueiras
olham-nos como gatos bravos, sem dúvida.
A tarde ganha formas digitais. Sentimo-la
e, por isso, quando acabamos de encher
a cesta, regressamos com ar de triunfo
ao estradão por uma orreta fragosa,
de sumagre, levandiscas e cornalheiras.
Às vezes paramos. O olhar precisa
das vinhas em frente, embora só isso.
Em chegando ao 2 CV, somos então verde-
mente surpreendidos pela Eva e pela Lídia
— olá, com que então, há meses —numa
revoada estrídola de amigos.
Os figos somem-se num relâmpago,
vendo-os nós reaparecer nas palavras
a toda a volta, enquanto um barco no rio,
com ar de quem bate palmas, desfralda
a vela, que é o seu modo de rir. Ao jantar,
comemos figueiras e taludes, escadinhas
célticas, talhadinhas de poente quente
e o perfil duma garça a alindar a memória.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.