Feiras e artesãos

Feira no Rossio de São Brás em Évora (foto de Artur Pastor)
Feira no Rossio de São Brás em Évora (foto de Artur Pastor )

Tenho entre as mãos um livro de A. M. Galopim de Carvalho 1, Director do Museu Nacional de História Natural e cientista que se tem distinguido na luta pela preservação das pegadas de dinossauros em Carenque (Sintra). Outro tipo de paleontologia o atraiu, levando-o a escrever um livro de contos-crónicas sobre figuras e factos de Évora, no segundo quartel deste século 2. A memória a descobrir e a afeiçoar luminosidades que lhe estrelaram a infância. Ou, diz ele, “como o abrir de um velho baú, num sótão onde se não ia há muitos, muitos anos”.

De momento interessa-me o texto em que apresenta os artesãos na feira de S. João que continua a realizar-se, modernizando-se com toda a sorte de maquinarias e pavilhões exuberantes, estereotipando-se sob este aspecto. É um fresco de tintas sóbrias e nítidas de sapateiros, ourives, albardeiros, correeiros (passava à porta de um deles “e parava a vê-lo coser um tirante, suspenso de uma argola de ferro saída da parede”), cesteiros, latoeiros, pintores de móveis, abegões e ferreiros (que expunham carros e carroças, peças destes, e alfaias agrícolas como “aivecas, charruas, ferros de grade para esterroar, enxadas, foices e muitas ferraduras, separadas em molhos por tamanhos e feitios” – Cesário Verde a topar do outro mundo), tanoeiros, oleiros e louceiros (“Um deles percorria as ruas da cidade, mesmo fora do tempo da feira, apregoando e vendendo “mel… água-mel… e loiça”, arrastando um burricalho carregado de loiça emparelhada e de pequenos potes com mel. – “Arre burro”! – exclamava ele entre dois pregões”).

O dizer de Galopim de Carvalho prima pelo que entende ser o olhar directo sobre as coisas e o que elas primeiramente significam, sem grandes mediações conotativas e lampejos poéticos. Situa-se entre os cronistas literários que escrevem com naturalidade, quer narrando uma ocorrência, quer descrevendo-lhe aspectos característicos, até porque desse modo se justificará o rigor etnográfico e o sociológico.

“– Quanto custa esta saladeira? – perguntava a minha mãe que precisava de substituir uma há muito em uso lá em casa, esboqueirada e de vidrado já muito estalado e penetrado pelas gorduras do azeite.

– Seis mil e duzentos – respondia-lhe a tendeira, vestida de negro, das saias ao lenço, descalça e de aspecto pouco cuidado.

– Quatro mil réis! – propunha-lhe a mãe, experiente nesta arte de comprar na feira. E, como que instruindo-nos para a vida, dizia-nos baixinho, meio virada para trás:

– Nunca se lhes dá o que nos pedem.

– Não posso, senhora! Empatei muito dinheiro para trazer toda essa loiça e tive muita quebra no transporte. – E acrescentava – Morreu-me o marido e tenho esta ranchada de filhos para criar. Dizendo isto, apontava para três ou quatro crianças, ainda pequenas, seminuas e sujas dos pezitos à cabeça, de cabelinhos muito louros e lisos.

– Cinco e quinhentos! – anuía.

– Pelos cinco mil réis, levo-a!

– Seja! – acudia a mulher, dando ares de se render”.

O significado psicossociológico de uma feira passa nos interstícios deste diálogo e enreda-se nele: o jogo dos pequenos interesses em que razão íntima, a ocultar-se até ao limite possível, serve de motor ao que se diz. Pequenos interesses, mesmo que a disputa ande à volta de um tractor, pois o que está em causa é sempre uma diferença; razão íntima que – acrescento agora – pode transcender o nível comercial e, no caso do artesão, que ideou e confeccionou determinado objecto, tem a ver com uma parte mais sensível da alma que, se por um lado se difunde, por outro se esvai.

Porque numa peça de artesanato sentimos muito mais do que lá se vê, é que nós miramos e remiramos uma cantarinha de Nisa ou de Estremoz ou, mais cá para o Norte, um galo de Barcelos, um trajo típico de minhota. As noites com ou sem lua de uma tecedeira, soluços ou cânticos de terra nas mãos de um oleiro. De resto, a feira de S. João em Évora, no que ela tem de fulgurações ou desperdícios de alma, é igual a todas as feiras. E as imagens dos artesãos deixaram brilhos inoxidados no “velho baú” da memória de Galopim de Carvalho como deixam na memória de cada um de nós, impressionando-nos até uma profundidade que é a exacta medida daquela que a nossa sensibilidade nelas atingiu. Também a figurinha que se esculpe em madeira ou cortiça, no que for, vale em relação, que a afectividade sempre aviva, como é o caso especial de um brinquedo de que um filho nosso é autor. As coisas não valem por si, não: valem pelo que significam.

  1. A. M. Galopim de Carvalho – O cheiro da madeira. Lisboa: Editorial Notícias, 1993
  2. O autor refere-se ao século XX
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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