I
Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura:
vai formosa e não segura.
II
Se tivesse umas chinelas
iria melhor…; mas não:
co dinheiro das chinelas
compra um pouco mais de pão.
Virá o dia em que os pés
não sintam a terra dura?
Leonor sonha de mais:
vai formosa e não segura.
Formosa! Não vale a pena
ter nos olhos uma aurora
quando na vida – que vida! –
o sol já se foi embora.
Se os filhos se alimentassem
com a sua formosura…
Leonor pensa de mais:
vai formosa e não segura.
Há verdura pelos prados,
há verdura no caminho;
no olmo de ao pé da fonte
canta, livre, um passarinho.
Mas ela não canta; não,
que a voz perdeu a doçura.
Leonor sofre de mais:
vai formosa e não segura.
Porque sofre? Nunca soube
nem saberá a razão.
Vai encher a talha de água,
só não enche o coração.
Virá um dia… virá…
Os olhos voam na altura.
Leonor não anda: sonha.
Vai formosa e não segura.
“Se eu fosse poeta, penso que a temática fundamental da minha poesia seria à volta de temas sociais, à volta daquilo que o povo português vivia, da opressão, da censura, do desejo de liberdade que nós tínhamos, etc.. Como eu não sou poeta, procurei na selecção que ia fazendo dos poemas que ia musicando, quem satisfizesse, digamos, esta prerrogativa ou esta necessidade que eu tinha, este objectivo que eu tinha, de veicular através desses poemas graves problemas sociais que nós tínhamos em Portugal. Essa minha escolha dos poetas que eu tentei musicar, e que musiquei, obedeciam essencialmente a este critério. Poemas que digam alguma coisa e que possam contribuir para manter ou aumentar em nós a sede de mudança e a sede da construção de uma cidade outra, uma cidade nova. Portanto, era esse o meu critério. (…) Todos esses poemas que eu musiquei têm como tónica fundamental a crítica social e o desejo de que as coisas se mudem, mudem completamente no nosso país.”
– Francisco Fanhais 1
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.