A chega de bois, quando organizada segundo a tradição, é o jogo que mais entusiasmo desperta na gente de Barroso. As aldeias jogam através dos seus queridos e pitorescos representantes que são os bois do povo, sentindo-se homens e mulheres impelidos por uma força que lhes vem do fundo do tempo e do sangue.
O boi do povo destina-se à cobertura das vacas e é principescamente tratado, de modo a apresentar-se forte e saudável. Vamos situar-nos há cerca de meia dúzia de anos atrás, e ver como as coisas se passavam, já que, de momento, a tradição parece muito abalada.
Cada aldeia tem um ou mais bois de cobrição a cargo de um pastor, que é pago pelo povo em alqueires de centeio. A remuneração é proporcional ao número de cabeças de gado de cada família. Além do pastor, há também um tratador especial, quando se avizinha uma chega. O boi é então objecto de cuidados excepcionais: anda-se pelas portas a pedir centeio, batatas e milho. Chega a dar-se-lhe cerveja e vinho com açúcar, a fim de ganhar mais ânimo.
A corte do boi é espaçosa e limpa. Algumas têm sino, para chamar as pessoas para as reuniões. A de Travassos do Rio possui uma pequena torre com a cabeça de um boi esculpida na parede. O boi ganha assim foros de símbolo divinizado. Ele representa a força e fecundidade da terra. “Um deus de cornos e testículos”, como diz Miguel Torga.
A chega entre bois de aldeias diferentes ou da mesma aldeia, se esta tem mais do que um, apraza-se com cerca de quinze dias a um mês de antecedência. É ao fim da missa dominical ou no forno público que o povo decide se vai haver chega ou não. No caso da afirmativa, começa então uma preparação cuidada, de que não estão ausentes os truques e os bruxedos. Vai-se ao ponto de tentar roubar o boi adversário, com o fito de organizar uma chega nocturna como teste. Na véspera do grande dia, “durante a noite, azougam-se ou colocam-lhe a pele de uma vaca ou vitela no lombo, para que, ao cheirar o inimigo, este fuja de pasmo e medo. Entretanto, na missa lembra-se aos santos o pedido de vitória para o boi da nossa terra. Fazem-se promessas, orações, responsos e votos de ansiedade para que toda a corte do Céu esteja do lado do nosso boi”. 1
O azougue é um estratagema fatal. O cheiro a sangue e sexo pode levar o boi adversário a ficar confuso: em vez de turrar com o inimigo, avança-lhe por trás ou foge. Tal estratagema, no entanto, é geralmente condenado.
Quando caminham com o seu boi para o campo de batalha, algumas pessoas “deitam sal em cruz nas ruas por causa da bruxaria ou mau olhado”, não levando o animal a atravessar uma corrente de água onde perderia o azougue (se o tive) e a força.
Em pleno campo respeitam-se as regras seguintes: os bois entram pelas extremidades opostas e cada boi é acompanhado do respectivo pastor, não podendo estar mais do que um ou dois homens ao pé. A assistência fica de largo.
Logo que os pastores embicam os bois um para o outro, estes miram-se e investem. É a regra. Só raramente um deles foge à confrontação. O embate pela cabeça pode levar o mais pesado a fazer recuar o outro. Mas os golpes de chifre, a astúcia e a determinação também contam. O prélio pode demorar um minuto ou geralmente, no máximo, cerca de 30. Um deles acaba por desistir, fugindo. O outro é o vencedor, imediatamente aplaudido pelos conterrâneos. Às vezes, os ânimos exaltam-se, devido a remoques e ditos escarninhos. Pode haver zaragata, o que cada vez menos acontece. O etnógrafo Lourenço Fontes conta assim o fim da festa: “Chegado ao povoado, o boi (vencedor) vai em procissão dar a volta às ruas da aldeia, ovacionado por todos que dizem: abençoado boi e grão que comeste! Há festa com baile para todos e vinho à discrição pago pelos entusiastas e apostantes”. 2
De momento, são já muito poucas as aldeias que têm o seu boi do povo. Razão: a falta de pastores, como nos dizem. As chegas são agora mais entre bois particulares que, embora desta ou daquela aldeia, não atraem tão espontaneamente como dantes a adesão apaixonada das populações. Há proprietários de bois que começam a ter na mira o lucro fácil que eles lhes podem dar, alugando-os para uma chega, dentro ou fora de Barroso. E às vezes, submetem-nos a um tratamento desregrado. “ Aqui há umas semanas – contaram-nos – o boi de F… foi para a chega, bêbado de todo”. Mudam-se os tempos, mudam-se os jogos também. A festa popular corre sempre o risco de dar origem ao exibicionismo, ao puro espectáculo e ao comércio.
Reportagem da RTP (1973-07-15) sobre a realização e o significado das chegas comunitárias de touros da raça barrosã em Montalegre, no distrito de Vila Real.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.