Quando cheguei, dei logo conta de que o meu 2CV destoava dos automóveis de luxo que reluziam no largo e pelas ruelas do Fiolhoso (até ouvi um puto dizer, mãos nos bolsos e nariz apontado: “Ah, este é o melhor!”), ruelas onde também velhas casas de blocos de cantaria, meio destelhadas e de portais caídos ou em via disso, destoavam de moradias azulejadas, garridas, com tractores a apanharem o sol em amplos logradouros. A aldeia fica num planalto do concelho de Murça e quase se liga à Levandeira e ao Cadaval que lhe pertencem como freguesia. Algum vinho meio verdasco, milho, castanhas e batatas.
– Boa terra para grandes soutos – disse a um velhote que como eu esperava no adro que a cerimónia começasse.
– Malvada é o que a terra é – retorquiu-me. – Olhe, aqui só restam velhos e javalis.
– Javalis?! Nada mal.
– Tinha um milheiral que me ia dar praí uns setenta alqueires e eles esfanicaram-me aquilo tudo.
Trouxe uns dez alqueires, se tanto. A terra aqui não há quem a queira. Se não fosse a emigração…
– Basta olhar. – acrescentou o meu primo Benjamim. – Esta aldeia tem, deixa ver, uns quinhentos fogos, na maioria coisa fina, casas feitas pelos emigrantes, mas roda a centena as que são habitadas. Isto quem pode foge daqui.
Mas nesse dia invernoso a aldeia faiscava. Faiscalhava. Um casamento de arromba. Em três actos e um epílogo: pequeno almoço, cerimónia litúrgica, banquete (“jantar é como se diz aqui, ora…”) e ceia. Cento e quinze pessoas a andarem de um lado para outro, trajadas como mandam as ventarolas. Às dez e pico, em casa dos pais da noiva, um desjejum opíparo. “Vê lá o que falta aqui, desde bebidas a gulodices?”, “Nada”. “Bota pra baixo, que o padre ainda demora”. Só lá para as três e tal é que o padre chegou, já o povo se apinhava na igrejinha. E já o carro dos noivos, à porta do adro, atravancando passagens na rua estreitinha, alardeava grinaldas, fitas e rendas.
Mas nesse dia invernoso a aldeia faiscava. Faiscalhava. Um casamento de arromba. Em três actos e um epílogo: pequeno almoço, cerimónia litúrgica, banquete (“jantar é como se diz aqui, ora…”) e ceia. Cento e quinze pessoas a andarem de um lado para outro, trajadas como mandam as ventarolas.
“Rica espada!” – ouvi e também pensei. O noivo, António, é emigrante no Luxemburgo, tal como a noiva, Lurdes Gaspar. Nada de novo no ritual, mesmo quanto a abraço, lágrimas, fotos, filmes e beijinhos! Mesmo quanto às flores e ao arroz despejado às mancheias sobre a cabeça. “Passa-lhe um pente” – alvitre de minha mulher que parecia uma alfombra, como eu. O cortejo de automóveis, pi-pi pelo Fiolhoso e pi-pi também, tinha de ser, pelo Cadaval, terra do noivo, com mirones por muros e janelas e voejos de tordos escramentados, abalou para Murça, a vila. Passo em falso a farta comezaina no restaurante para me deter num pormenor: o leilão do laço do noivo e de um sapatinho da noiva, coisa espantosa que durou mais tempo do que os comes-e-bebes. “Usa-se muito por aqui?” – indaguei. “Há quantos anos!” – disseram-me. “O dinheiro é para os noivos”. Primeiro foi o laço que um moço, também emigrante e enjaquetado a rigor, fez subir a setenta mil escudos. Um finório, o leiloeiro, na arte de espicaçar a rivalidade entre as maltas do Fiolhoso e do Cadaval. Reparei que nenhum lanço era inferior a quinhentos escudos e que as notas eram entregues no momento em que ele se fazia. “Eh lá! Bota prà frente”, “Quem dá mais?”. Risos, aclamações e apupos. Um delírio. E o sapato da noiva, que entretanto teve de ficar com um pé na tijoleira, olarila, atingiu a bonita quantia de cento e quarenta e quatro contos. Manuel Gaspar não queria a filha descalça e, de nota em nota, foi desembolsando trinta e cinco dele. De nada lhe valeu, porque um rapazola de casaco de cor de vinho intrometia-se nos momentos decisivos. Era do Cadaval e… namorava com a irmã da noiva, um botãozinho que não parava de sorrir.
– O senhor não se admire – disseram-me. – Olhe que no ano passado, num casório como este, as cuecas da noiva renderam quinhentos contos.
– Quinhentos contos! – exclamei, sem perguntar quem as tinha ido sacar à feliz contemplada.
Eram vinte e duas horas, quando a ceia começou na ampla casa dos pais do noivo, também emigrantes no Luxemburgo, ele há vinte e um anos, mas a trabalhar na “vila”, conforme o próprio me informou. Foi, outra vez, comer e beber à tripa forra. “Este cabrito está uma maravilha! Quentinho”. “E o leitão: ora prova”. Ninguém queria o marisco e as bebidas espirituosas para nada. Só vi um rapaz encher um copo de “Chivas”, desaparecendo num ápice para o bailarico que decorria num salão do primeiro piso. Vinho pois, vinho é que era. “Ainda é do ano passado, que o deste ano…”. Com tantas e tão boas viandas, quem ia lá embriagar-se?
Regressei, altas horas da noite, pelo chuvisco, com a certeza de que, se me mandassem bufar ao balão, o aparelho acusaria a presença de rouxinóis.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.