A vida aqui decorre normalmente.
Nada de novo ou pouco.
O tempo anda na montanha,
circula como um bicho em fruto oco.
Que hei-de eu dizer? Que faltam
braços de homem para o campo
e há quem se ponha a entristecer
com sua inútil razão?
Não sei se entendes. Estamos em Dezembro
e por aqui apanha-se a azeitona.
Como os braços não chegam,
formam-se limos no fundo dos olhos.
É muito natural que não entendas.
Aí na cidade os hábitos são de vidro
e fala-se de nós como quem
espreita a neve detrás da gelosia.
Mas a vida decorre normalmente.
De tarde iludi as férias com duas
horas passadas no olival.
Suei. Provei que tinha músculos.
Sabes como se colhe a azeitona?
Bate-se nos ramos com uma vara comprida
e, sobre uns toldes, como se chovesse,
o ouro, ainda preto, vai caindo.
Estive a ponto de citar Virgílio.
Quase o via ao pé de uma giesta.
Coroado de alegria, de charuto,
botas brancas e ar de conselheiro.
Mas não citei. Impediu-me
uma velha que sofre de reumatismo
e, com esforço, com os dedos tortos,
apanhava a azeitona, sem um gemido.
Que hei-de eu fazer? Bem sabes
que não sou político nem posso.
Vou pensando e escrevendo
com a alma assente nos ossos.
E é tudo. Não me alongo. Estou com sono.
Aqui é meia noite verdadeira.
Ladram os cães. Há lua, com certeza.
Que paz, embora oca, a desta aldeia!
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.