Viam-se com frequência nas feiras da nossa terra cegos a cantarem com o fito na esmola das pessoas que entretanto os rodeavam. Pessoas muitas vezes interessadas, até à emoção, nas geralmente suaves e dolentes histórias que iam ouvindo. Esses tão simpáticos herdeiros dos jograis medievos vêem-se cada vez menos, que as feiras, aliás, perdem gradualmente o seu antigo bulício e esplendor, mercê dos mercados modernos, sobretudo dos super e hiper. Aedos que tantas vezes escutei, como eu os recordo!
Faziam-se acompanhar sempre de alguém, frequentemente de uma criança que, ao fim de cada actuação, ia de chapéu na mão solicitar a ajuda dos circunstantes. E o “obrigado”, dito ao modo de quem geme uma qualquer desventura, era o prolongamento da história narrada. Velhos solaus ou a versificação de um caso lastimoso, real ou não: se real, aureolado já de razões misteriosas e pormenores impensáveis; se imaginário, contado de forma a avultar-lhe o realismo e os segredos do coração humano.
Não era apenas nos lugares onde havia feira que os cegos apareciam, pois muitas vezes iam lamuriar de porta em porta, quando não em romarias ou num pequeno largo da povoação, aos domingos, ou à tardinha, pelo regresso do trabalho. Um tipo de mendicidade que, por vezes, caía fundo na alma das pessoas simples, as quais guardavam, por muito tempo, as letras e músicas ouvidas.
De uma dessas pungentes xácaras, que percorreu a região transmontana e duriense, pela minha infância, me lembro agora, só a ouvindo de momento aos mais velhos, mas de longe em longe. Um conto em que o sentido da tragédia e a lição moral ou efeito catártico estão bem patentes:
A filha do fazendeiro
foi sempre a moça mais linda.
Namorava um serralheiro,
tinha-lhe amor verdadeiro,
um amor que nunca finda.
O pai da Rosa não q’ria
que ela amasse um operário:
teve nele uma mania
de a meter na burguesia,
casando-a c’um milionário.
O romance prossegue, revelando a paixão inabalável dos jovens que não cedem a pressões, como sucedeu com o Simão e a Teresa do Amor de Perdição. Entretanto, o pai de Rosa, enraivecido, tresloucado, “acabou com tanto amor,/ matando o trabalhador/ que a Rosa tanto adorava”.
Ao ver morto o namorado,
grande dor a Rosa tem.
Com o peito esfacelado,
sobre o caixão do amado
a Rosa morreu também.
É este o ponto alto do poema, equivalente ao que nas tragédias da Antiguidade se chamava catástrofe (desgraça), a culminar o clímax (desenvolvimento gradual da acção). E segue-se a passagem final, espécie de êxodo ou epílogo, em que se apela à inteligência sensata:
O pai da Rosa morreu,
cheio de remorso e dor.
Um conselho aos filhos deu:
nunca façam como eu;
quem vence sempre é o amor.
Apresento os excertos tal como os ouvi, sabendo no entanto que há pequenas variantes. Trata-se de uma composição bem ritmada e, apesar de patética, sem enxúndias de linguagem. Por esta amostra, não se pode falar da inferioridade formal da poesia popular, como tem muitas vezes acontecido, a partir do próprio Garrett, o qual ia ao ponto de modificar as composições tradicionais com a finalidade de as “aperfeiçoar”. Garrett, note-se, que foi um pioneiro nas recolhas deste tipo de poesia, reconhecendo-lhe profundo interesse humano e cultural.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.