Não sou dado a acreditar nos poderes ocultos de bruxos e curandeiros, relativamente à solução de problemas psíquicos e orgânicos que a ciência não resolve ou tem dificuldade em resolver. Mas entendamo-nos: lá que certas pessoas, que os consultam, veem os seus padecimentos desaparecerem ou atenuarem-se – disso é que eu não duvido. E, claro está, dou a muitas dessas curas a explicação do querer aliado à fé, entendendo esta como S. Paulo: “A fé é o fundamento das coisas que se esperam e é argumento das que não se veem”. 1
Quando se tem fé, mesmo racionalmente infundada, na capacidade ou virtude de alguém para remediar uma doença e se essa fé mergulha até ao fundo da alma, ao ser estimulada e coadjuvada por uma aflição, ah, nesse caso, a recuperação é possível, em certas circunstâncias. É esta, aliás, a explicação psicológica para uns tantos prodígios operados naqueles que se dizem desenganados dos médicos e outros praticantes das ciências experimentais. “A fé remove montanhas”. A cura em tal caso fica a dever-se à predisposição do curado e não ao curador, que assim não passa dum pretexto.
Se não acredito, todavia, nos poderes ocultos, que podem ir até alegados pactos mefistofélicos, de bruxos ou feiticeiros, curandeiros e reguilas afins, como astrólogos, quiromantes, cartomantes, etc., tenho de reconhecer: por um lado, o artifício e a subtileza de muitos deles, os quais, beneficiando do estado de espírito do paciente, facilitam a sua reabilitação; e, por outro, a existência real de faculdades magnéticas, telepáticas e hipnóticas, algumas delas utilizadas com êxito por psicoterapeutas, psicanalistas e parapsicólogos. A parapsicologia, reconhecida como ciência em meados deste século, analisa os fenómenos psíquicos e seus efeitos aparentemente inexplicáveis, pressupondo que eles têm origem nas faculdades humanas, em circunstâncias especiais ou em pessoas especialmente dotadas. Dado o relativo êxito desta jovem ciência, são já muitos os bruxos e astrólogos que se autodesignam de parapsicólogos; e daí talvez não venha mal nenhum ao mundo, sendo necessário reconhecer, no entanto, que, na maioria dos casos, a magia não passa de fraude e charlatanismo a que o sofrimento humano tem dado, e porventura continuará a dar, cobertura.
É preciso distinguir o terreno em que se movem bruxos e curandeiros, o qual, quanto aos primeiros, é sobretudo o das perturbações psíquicas e, quanto aos segundos, o das corporais.
É preciso distinguir o terreno em que se movem bruxos e curandeiros, o qual, quanto aos primeiros, é sobretudo o das perturbações psíquicas e, quanto aos segundos, o das corporais.
Eis um caso recente que eu mesmo testemunhei num dos congressos de medicina popular em Vilar de Perdizes, que o etnógrafo e pároco desta localidade barrosã, António Lourenço Fontes, vem organizando com grande afluência de especialistas e público, acamaradando bruxos e curandeiros com médicos, antropólogos e psicólogos. Topei na rua um curandeiro, no meio de muita gente, que exibia, nas costas da mão nada mais nada menos de que um lacrau e afiançava que com uma picadela do fistor podia diagnosticar a gravidade do cancro e até curá-lo, se não estivesse adiantado. Vim a saber que o homem se chamava José Borges e vinha de Vale de Salgueiro, Mirandela. A arte escorpiónica ter-lhe-ia sido inspirada por força secreta, durante uma viagem Luanda – Lisboa. Confesso que me pus a mirar e a remirar o pelo visto inofensivo bichinho, que passeava de cauda em arco, na pele do seu amo como cisne num lago finlandês. Majestoso.
“O gajo deve estar capado, senão ferrava-lhe mesmo.” – ouvi a um olhapim, enquanto uma mulher, de nome Ana Joaquina, dos seus quarenta e tal, se aproximava do entendido, dizendo-lhe que queria ser picada. “Com’assim…?. “Onde é o tumor?”. “Na barriga”. “Pois, no útero”. “Sim, um médico de Braga desenganou-me”. O homem tirou então o chapéu da cabeça, colocando-o sobre o aracnídeo, de forma a encobri-lo, e propôs à enferma que metesse a mão por baixo, se é que não tinha cagócio. Não teve. E no instante seguinte, toda a gente a viu estremecer. “O raio do bicharoco picou-a mesmo!” – exclamou o olhapim desconfiado. E o curandeiro, todo em desenvolturas: “Dentro de quatro ou cinco horas, procure-me e diga como se sente”. Explicou: se as dores parassem ou começassem a abrandar, antes de oito horas decorridas, do céu lhe viesse o remédio, pois não havia nada a fazer; se continuassem por umas horitas, ótimo, ia sarar, que entrementes, o veneno do anicrel limpava-lhe o sangue. Fiquei banzado com tanta segurança e uma jovem médica que estava ao meu lado, idem, aspas.
Era a hora do almoço e, com outros compinchas, entre os quais o senhor José Borges, fui abancar no santuário da Senhora da Saúde. Teriam passado duas horas, quando Ana Joaquina reapareceu, lamuriando que já não sentia dores. Os olhos dos circunstantes convergiram todos para o curandeiro, transformado em vedeta: torceu o nariz e voltou-se com ar compungido. Ela, não sei se conformada, se quê, retirou-se em silêncio. Uns meses depois, telefonei para o meu amigo Lourenço Fontes a inteirar-me do estado de Ana Joaquina. Tinha falecido.
- S. Paulo, Epístola aos Hebreus, 11, 1. ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.