Aqui Douro. O Paraíso do vinho e do suor.
Dum rio no Verão ossudo e magro
como as pessoas,
quando a alma se escoa pelos poros;
rio também barrento, a cor da terra,
para que a alma seja inteira;
rio das grandes cheias, do abraço final
de troncos de homens, de árvores e sonhos;
dum rio agora jovem: a água demora
o seu espelho nas barragens, e os barcos
cheios de olhos filmam a história
dum deus desconhecido.
Paraíso dos montes sobre montes,
agressivos mas belos,
montes que se agigantam, ombros vivos
dos violentos ventos e do sol,
e montes que se dobram e desdobram com os ribombos,
abrindo ribanceiras e fundões.
Oh Cachão da Valeira, sepultura de incêndios!
Paraíso das hortinhas e pomares:
a água é menos esquiva
para que os homens sujem bem as mãos
de encaixotar num sonho meia dúzia de laranjas,
enquanto os melros pintam a carvão
sua risada galhofeira e livre.
Paraíso dos nove meses de Inverno
e três de inferno:
Outubro a Junho, é o nevoeiro sanguessuga
que morde até aos ossos e às palavras;
Julho a Setembro, é o sol em lâmina
que fere os olhos até ao pensamento.
Paraíso do suor,
dos homens de camisas empastadas,
a terra a queimar os lábios
e a torcer-lhes a fala em raivas humaníssimas,
cavando, neles cavando o desespero
e o amor também
(a noite e o luar)
porque no fim de tudo
a terra é flor e corpo de mulher.
Paraíso da aguarela forte das vinhas
que entram em ondas verdes pelos olhos.
Vinhas que estão na vida desta gente
como grito nos lábios,
como flor no desejo,
como o olhar nos olhos,
vinhas, sei lá, que são a própria vida desta gente.
Paraíso dourado das vindimas!
Então o Douro é d’ouro.
Ouro no sol que põe tudo em labaredas:
os cachos e as nuvens de poeira
espantadas pelas patas dos cavalos
e dos camiões, ron-ron, ladeira acima.
Ouro na tagarelice das mulheres
que vindimam as uvas e as ideias;
um certo ouro no silêncio dos homens
que em fila e ferro transportam os cestos.
Ouro ainda no regresso do trabalho,
ao som dum bombo, duma concertina.
Ouro nos cestos, nos lagares, nas pipas,
ouro, ouro, suado de sangue, ouro!
Ouro talvez nos cálices de quem
veio de longe assistir da janela.
Ah Paraíso dourado das vindimas,
do vinho quente, vinho-gente, que cintila,
que é suor e sangue e sol engarrafado!
Paraíso também das romarias;
Da Senhora da Piedade, do Viso e dos Remédios:
gente de gatas como animais
porque a Senhora interveio
e ante o céu
somos uma coisa qualquer por acabar.
Há um homem que leva uma facada,
mas há também ex-votos,
estrelas a germinar nos olhos.
Paraíso das sete ermidas!
– o céu gotejando no cimo dos montes.
De castros e ruínas
– o vento do passado colando-se ao rosto.
Das minas que devassam o abismo
– fui à boca de uma em criança
e recuei como se tivesse visto
todos os dentes da bicha-das-sete-cabeças.
Paraíso dos caminhos tortuosos
– pois Deus escreve direito por linhas tortas.
Dos duendes nocturnos
– ninguém chegue à janela quando passam.
Das mouras encantadas
– o afiançou minha avó: há uma
que se chama Maria
e é linda, linda como as manhãs de Junho.
Paraíso
dos barrancos inconcebíveis,
das rogas e dos silêncios,
do grandioso silêncio das montanhas!
Paraíso! Paraíso!
Oh cântico de pedra à esperança!
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.