O que ninguém viu, salvo uma senhora, e eu também não vi, ia lá ver essas coisas naquele tempo, foi aparecer um fantasma junto à cascata. Mas vamos por partes.
Na rua em que nasci acendiam-se lamparinas na noite de São João. E também se deitava um balão, pelo menos. Era vê-lo a subir para as estrelas. E eu, ainda pirralho, pensava que as estrelas, sobretudo a lua, iam ficar contentes com a companhia e não lhes dava para caírem na rua em cima de nós. As lamparinas suspensas de meia dúzia de arames de vinha, essas é que eram o meu encanto. Grisetas de azeite a bruxulearem no fundo dum copo de papel de seda, as lamparinas atraíam os olhos da pequenada que luziam com elas.
Luziam já uma semana antes. Lembro-me de ver o ti Manel e o ti Bento a enrolarem papel colorido, enquanto nós, os canalhitas, andávamos de casa em casa a pedir azeite e latinhas de pomada vazias. Algumas já as tínhamos nós, das que sobravam do Entrudo, ocasião em que as púnhamos sobre as bombas de estouro, mal lhes acendíamos o rastilho: era vê-las desencabrestarem-se e saltarem aos telhados. Tudo o que subia nos deliciava – subir a uma árvore, o subir dum balão.
E a cascata feita de ramos de pinheiro em ogiva, o São João ao meio, todo rapioqueiro num altinho donde corriam fios de água? Até havia um lago onde nadava um patinho de celulóide, nadava sem precisarmos de ir lá com a mão como quem dá à manivela. À entrada da cascata estava todo repimpado o cordeirinho: fazíamos-lhe uma festinha e ele punha-se a olhar para nós como quem vem de longe e se aproxima. Também havia figurinhas de pastores e pastoras. Uma vez, um catraio pegou num, lá o deixou cair, teve sorte, não se partiu, mas o pai deu-lhe um lambefe, era o bolinhas, chamávamos-lhe assim por ter a cara gorducha. E havia quem rezasse e quem se risse, não sei de quê, tudo ao mesmo tempo. Qual tempo, qual nada, ali não havia tempo. Só a cascata.
Sem se saber como nem donde, apareciam então ranchos de mulheres, só mulheres, a cantar. Primeiro as solteiras:
Estas é que são nas saias,
estas saias é que são.
São cantadas e bailadas
na noite de São João.
Repenica pràqui, repenica pràli, faziam roda, chamavam os namorados, e nós os fedelhos para o meio. Depois os rapazes saíam e elas, rua abaixo, rua acima:
Ai orvalheiras, orvalheiras, orvalheiras
e vivò rancho das mulheres solteiras.
Depois vinham as casadas e no fim as viúvas, as primeiras a rimar casadas com orvalhadas e as segundas, viúvas com orvalhudas. Farra assim… O ti Zé Num Sei Quê fumava cachimbo. Mas aconteceu uma coisa: Onde está o São João? Veio a saber-se que uma rapariga o tinha levado no rancho e dançava com ele catrafilado nas mãos ao alto. Deixá-lo ir, cá volta. Agora a gente deslocava-se toda para o largo principal onde decorria o despique entre os ranchos do mulherio. Cascata abandonada. Assim parecia.
Quando nisto as lamparinas tremeram, uma até ardeu com um cheiro esquisito, e um fantasma apareceu mais abaixo, no terreirinho onde estava um pequeno monte, não era assim tão pequeno, de alecrim, rosmaninho, alfazema, belas-luzes e outras ervinhas de cheiro para a fogueira. O fantasma, poc, poc, como se andasse de socos, juntou uma braçada de mandrágoras às ervas, misturou bem, foi à cascata, lá descobriu a torneira da água e fechou-a, ia pegar nos pastorinhos para os partir mas eles, ná, entesaram-se. Pôs-se a matutar, foi-se ao cordeirinho, desprendeu-o e ia envenená-lo com as mandrágoras, quando o São João apareceu e pegou no cordeirinho ao colo. Com a água que já corria na cascata borrifou o alma do diabo que depressa se pisgou.
– Era mesmo o São João Batista com que a Ermelinda estava a dançar no largo? – pergunto eu à tia Zefa que me estava a contar o sucedido. – Esse continuei a vê-lo no largo e não podia ser. E ela: tanto podia ser que foi. Quando eu quis saber por que é que ela não espalhara isso pela aldeia, coisa tão interessante para as pessoas conhecerem, disse-me que não espalhava nem eu iria espalhar. Como a janela de sua casa ficava em frente da cascata poderiam pensar que era ela a autora da patifaria ou então chamar-lhe-iam maluca. Ora, o mundo é que anda maluco, perorou.
Pelo visto, a única coisa de que os foliões se aperceberam, ao regressarem, foi de uma lamparina ardida e acharam natural. E a folia continuou, acenderam e saltaram a fogueira, comia-se e bebia-se e os balões foram dar beijinhos à lua. As luminárias iam-se apagando por falta de azeite e, quando o sol rompeu, ainda havia gente por ali.
Onde é que hoje há sanjoões assim? De facto o mundo, se não está a ficar maluco, anda pelo menos um pouco despassarado.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.