A VINHA, coisa breve. Fica num altinho. E o ti Quim vê ao longe o Marão onde se afundam muitas estrelas brilhantes e é por isso que aí nascem os ventos. Se tossir, levanta-se uma revoada de estorninhos. Estorninhos, ou melhor, um cacho de tinta roriz que solta os reflexos impacientes.
O GATO dormira no escano feito vinha, mesmo ao lado do pensamento velho do ti Quim, e um armário rangia, escrevendo a noite a giz. O comércio vai pagar mal as uvas, não compensando o trabalho. E até a luz se esconde atrás das nuvens como se estivesse a aparafusar os caleiros do outono. Mas que vindima triste é a incerteza! Vá lá que uma boa forma de matar o tempo é percorrer a vinha, geio a geio, ir por um, vir por outro, até encher o frasco das sensações. Destapa-o à noite, durante o sono, para as abelhas se libertarem suavemente.
APESAR DE TUDO, o ti Quim vindima alegremente, tendo apenas as suas abelhas por companhia.
ESPORAS DE OURO ao pescoço, ao ver as uvas súplices e pingonas do vizinho, pergunta se quer ajuda, mas ele, agradecendo a amabilidade, responde com o pensamento que lhe lia nos olhos: vendi o cartão do benefício, não farei mais do que uma pipoca e meia para gasto de casa – extintas as velas altas que o iluminariam – e o resto das uvas deixo-as aqui até ao Natal, até que o inverno as leve, até à puta que as pariu. O céu era um tambor. O cão das palavras afastava-se. E as lágrimas que afloravam aos olhos de cada um tinham as persianas corridas.
NO DOURO há quintas fartas. De tudo. Até de trabalhadores que não se apercebem de que quanto mais trabalham para os outros menos trabalham para si. As raparigas curvam-se ao pé das videiras. Os anjos porém já não estão ali. E uma mulher de oitenta anos, com as pontas secas a desfazerem-se em borboletas, ou lá o que eram, ria-se para dentro. O ti Quim ouvia tudo.
VINDIMA FEITA, eu, o cronista, rumei a uma vinha, que tal. No caminho cruzei-me com o ti Quim. Bom dia. Seria. Boa noite. Como o carro em que me deslocava era um 2CV ainda azul, não tive dificuldade em desprender-lhe a cor celeste e, com alguma curiosidade, fazer um espelho que pendurei nos olhos. Mas a cor celeste não me ajudou. Do que vi saliento: um coelho em tufinho de verduras sob o voo picado, seco, dum milhafre; e a solidão esculpida em grandes ondas.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.