Pelo que disse no número anterior, parece justificar-se a existência de placas nalgumas estradas portuguesas a atestarem que por ali passaram peregrinos rumo a Compostela. Mas atenção, leitores, isto de alcançar o título oficial de peregrino não é pêra doce. É preciso jornadear pelo menos cem quilómetros a pé ou duzentos de bicicleta. Coisa que eu nunca fiz, apesar de ter ido a Santiago por diversas vezes, repetindo na segunda e na terceira uma cerimónia interessante: pôr a mão num pilar da entrada da basílica, afundando os dedos em pequenos orifícios que ali ficaram dos muitos milhões que antes de mim fizeram o mesmo; o meter-me na bicha, atrás do altar-mor, para o abraço amigo a S. Tiago.
O tal título oficial, também chamado Compostela, recebe-o na Oficina de Peregrinação de Santiago, junto à Porta Santa da catedral, quem estiver devidamente habilitado: possuir uma credencial de peregrino, passada por uma associação competente e selada durante o percurso por uma associação do género (paróquias, confrarias, etc) num total de quarenta vezes, incluindo a última. Ora, isto tem que se lhe diga. Valha que, agora, com melhores estradas e atalhos e mais gente a encontrar-se no percurso, o que menoriza o perigo de um ou outro salteador que possa aparecer, e ainda com as muitas farmácias com que se depara, é bem mais fácil cumprir a devoção.
A propósito de farmácias, recolho de um livro informação sobre a medicina natural do Caminho. Está visto que andar tanto a pé pode ocasionar deslocações de ossos, perturbações da vista e desarranjos intestinais. Pois bem, ouçam: “Dizem que uma colherinha de argila, diluída num copo de água e tomada três vezes ao dia, cura a diarreia e misturada com água ou azeite serve de dentífrico e cura os problemas de gengivas; as torceduras aliviam-se com gelo e uma cataplasma de barro frio; a essência de hortelã-pimenta desinfecta as feridas e elimina os gases e flatulências; o limão termina com a conjuntivite e o alho previne contra as possíveis infecções e dores do tubo digestivo”. 1 Haja quem diga o contrário.
Na catedral há fartos motivos de prazer estético. Rosalía de Castro, que em Santiago tem expressivo monumento, toda se deleitava na contemplação das imagens.
Estarán vivos, serán de pedra
aqués sembrantes tan verdadeiros,
aquelas túnicas maravillosas,
aqueles olhos de vida cheos? 2
No prosseguimento do poema intitulado Na Catedral lembra-se de Mestre Mateo (“Vós que fixeches de Dios coa axuda”) e pede-lhe: “faláime de eso”. Uma referência especial a este Mestre Mateo que, pelo final do século XII, foi o grande artista das obras do Pórtico da Glória e da cripta românica da catedral, com acesso pelas escadas que sobem da praça do Obradoiro (assim chamada devido às obras do monumento). Conta-se que, depois de terminar o seu notável trabalho, o povo “lhe arrancou os olhos para que não pudesse repetir outra obra semelhante”. Que zelos mais patrioteiros, senhores leitores! Tenho de arremedar a cantiga: “Bonito, bonito, bonito não é”. Mas é na verdade um modo de perpetuar a memória de Mestre Mateo. De todos os grandes artistas que, contas feitas, nos legaram sempre aquilo a que se tem chamado a sua obra-prima que consubstancia as demais por ele realizadas. É aquilo a que ultimamente se dá o nome de holograma, num certo sentido: um fragmento proporciona a visão do todo. E – que os leitores me relevem a especulaçãozinha – avançando mais nestas coisas da física quântica, pode mesmo conjecturar-se que Mateo, já sem olhos, continuou a sua criação artística, esta a realizar-se num universo paralelo, se, quanto à existência deste e doutros, vier a confirmar-se a hipótese do americano Hugh Everett, o que, diga-se, não parece nada fácil.
Mais dois apontamentos apenas quanto ao Caminho. O primeiro sobre o célebre botafumeiro que é nem mais nem menos do que um turíbulo argênteo enorme, isto é, um espalhador de incenso, que mede um metro e sessenta centímetros, pesa 80 quilos e funciona aparatosamente nas grandes solenidades litúrgicas, balouçando-se no espaço da catedral sobre as cabeças dos fiéis.
o célebre botafumeiro que é nem mais nem menos do que um turíbulo argênteo enorme, isto é, um espalhador de incenso, que mede um metro e sessenta centímetros, pesa 80 quilos e funciona aparatosamente nas grandes solenidades litúrgicas, balouçando-se no espaço da catedral sobre as cabeças dos fiéis.
O actual botafumeiro é o quarto da catedral, tendo sido o terceiro roubado pelos franceses em 1809 (bonapartices!). Parece que tão curiosa peça se destinava a purificar o ar pesado e mal cheiroso provocado pelos peregrinos que pernoitavam no interior do templo. Um segundo apontamento, sobre o Projecto Oikoten, em que nos anos 80 deste século 3 se reinstaura na Bélgica uma pena dos tribunais flamengos medievais que o governo do país reconhece oficialmente em 1987. Imagine-se: aos jovens delinquentes, com idade média de 17/18 anos e considerados de recuperação difícil (excepção feita aos toxicodependentes e aos afectados por graves problemas mentais) é proporcionada a peregrinação a Santiago, entre outras possíveis viagens. Saindo-se bem, a pena é-lhes perdoada. Note-se que a caminhada dura aproximadamente quatro meses, e eles, em grupos de seis, são acompanhados de um ou dois conselheiros. Segundo os dados conhecidos, a reabilitação é de 40%, o que não é nada mau. À atenção do nosso Ministro da Justiça. Ainda que Santiago, como Fátima, fiquem aqui a dois passos, vá…
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.