Ainda hoje se fala nesse dia. Que
surgiu como bola de fogo
na sulfurosa montanha.
Dies irae, dies illa. Distante, mas
não tanto que se tenha apagado da raiva.
Sobretudo os mais novos são os primeiros
a recordar. Um hálito forte
de Primavera excitava o húmido
corpo da noite e alguns cravos
trocavam na varanda suas palavras
recentemente proibidas.
À boca de muitos túneis, o mesmo corpo
surgia lentamente inundado de tons
claros. E passos musicais, firmes,
falavam cada vez mais alto
pela incrível madrugada.
Quem decidiu tão feroz descontentamento
e encheu de alecrim as urnas
da memória? Até o ouro tinha um sabor
a enxofre. Velhas ideias
ardiam. Quão doce espectáculo! As culpas
reentravam no buraco dos olhos,
coisas insalubres, enquanto as lendas
vinham para a rua em cabelo.
Quando rompeu a manhã, um clarão
íntimo começou a jorrar
dos armários da luz, acumulação
de muitos anos, subiu de novo
às varandas, floriu no púbis.
Escancarou as coisas interditas.
Os jornais e as fábricas, a alcova
secreta, a rua e os campos anilados,
A escola da luz, tudo isso comoveu
o frágil coração do poeta que
pôs os olhos atentos na cotovia:
do morro o coração, emerso no nevoeiro,
cintilava. Ainda hoje
se fala desse dia.
Mas
sobretudo os mais novos continuam a recordar.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.