Tarde de Agosto de 1979. Como no dia seguinte toda a gente se deslocava para a romaria da Senhora da Saúde, Ricardo, que sentiu vontade de ir para o rio, perguntou a Miguel se tinha alguma coisa a fazer, caso contrário dava-lhe jeito se o acompanhasse. Vamos hoje e vamos amanhã, padrinho, disse Miguel. Eu até gosto mais de ir para o rio do que para a festa. Não quer dizer que não goste de andar no carrocel e nas cestinhas e de ver aqueles andores muito altos, lá isso gosto, mas se não for amanhã vou depois à Senhora da Piedade a Sanfins, o padrinho deixa, pois claro. Ricardo comovido com a amabilidade do filho a quem amava com desvelo pensou que podia congraçar perfeitamente o seu prazer pessoal com o dele, se nessa tarde o acompanhasse a Saudel, onde os divertimentos já deviam estar em funcionamento, e só no dia seguinte fosse para o rio. Ao ouvi-lo, Miguel concordou imediatamente, pois lembrou-se de que nessa tarde havia jogos, como a subida ao pau ensebado e o jogo das panelas. O Xanito e o Pedro, de Vilar de Maçada, seus colegas em Alijó, também iam e gostava de ver se o gabarolas do Xanito conseguia chegar ao bacalhau. Dissera-lhe ele que tinha um truque, limpinho, levo terra nos bolsos e vou-a pondo no sebo, enquanto subo, limpinho, o bacalhau já cá canta. E o Pedro, fino como um rato, já tinha feito das suas na escola, pois partira a panela com o galo, por duas vezes. Batota, fizeste batota, pois foste direitinho à panela, disseram-lhe, batoteiro, espreitaste por baixo da venda. Não espreitei nada, replicou, oxalá que eu arda. E é verdade, padrinho: não tinha espreitado. A mim contou-me como foi: o Xanito, combinado com ele, punha-se de perto e com um apito na boca dizia-lhe como era. Um toque – sempre em frente; dois – para a direita; três – para a esquerda; quatro – para trás. Quando chegava ao direito da panela, zás, malhava-lhe com o fueiro, já está. Também quero ver, continuou Miguel, explicando melhor os jogos a Ricardo que sorria interessadamente – nesse caso, vamos lá.
Cristina viu-os partir e foi perguntar a Francisco se o carro tinha bons travões, se estava afinado, pois o patrão estava pouco habituado a conduzir. Afinado como um relógio. E se têm um furo? Ora, o Miguel muda o pneu num abrir e fechar de olhos, tate.
Meu dito, meu feito, padrinho: lá estão eles e parece-me que estou a ver o Xanito, é ele mesmo em cima daquela parede.
O largo da Senhora da Saúde é dos mais amplos e verdes da região, abrindo-se-lhe, a norte e a nascente, um vale de muitas vinhas, pinhais e castanheiros, com o rio Pinhão a atravessá-lo, de açude em açude, e o bico do Cerro da Cunha muito distante a espreitar com a devota curiosidade de um monge. O chão está sempre relvado, pois, tirante a festa anual de três dias, só grupinhos domingueiros ali se deslocam para merendolas, às vezes um par de namorados que, metido às sebes, recebe o olhar maravilhado da Senhora, mais compreensiva do que por aí se diz, ou então gente a rezar e a cantar em romagem de desagravo ao Coração de Maria que o bispo da diocese se lembre de organizar em tempo de mundanismos. Nessas ocasiões, o farto ervaçal sofre umas despenteadelas, logo remediadas pela frescura da terra: a leituga do talo sumudo, a tenra milhã, o rango, guerrilheiro, a bela-crista, que limpa os olhos, o poejo, de flor branca e aromática, o labresto, de finos grelos, a meruje rasteirinha, a amargaça e a bela-luz, que tão bem cheiram nas fogueiras de S. João, e outras verduras, de tal modo se recompõem que, à entrada de Agosto, embora o sol escalde as pradarias, há necessidade de proceder a uma ceifa valente a fim de o recinto ficar asseado.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.