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A caqueirada

No Carnaval até os cacos entram no banzé: cacos de louça partida e cacos de louça a partir. Como se fosse o tempo de atribuir uma função útil a sarandalhas e escassilhos que já deram o que tinham a dar. Como se o atirá-los para dentro de uma casa fosse um aviso; como se provocá-los ainda uma vez fizesse transpirar do gesto uma lição; ou como se isso não passasse de um excessozinho eufórico em tempo de tácitas permissões.

Há quem seja dado a ver em cada coisa um sentido íntimo, como há quem lave daí as mãos e assevere que “O único sentido íntimo, das coisas/ É elas não terem sentido íntimo nenhum” (Alberto Caeiro). Pois é. O pior, ou talvez o melhor, é que nesta democracia do entendimento em que o homem se move, o antagonismo de sentidos não arrasta por si só a ilegitimidade de uma das partes. No caso das caqueiradas carnavalescas, todos nós somos confrontados, ainda que mais ou menos conscientemente, com uma das interpretações: o divertimento, simplesmente, no dia que lhe é por tradição favorável; ou, digamos, o divertimento com água no bico, que é como quem diz: o divertimento com uma lição moral a deixar o rabo de fora. Lição que é mais ou menos uma destas: vê ao que te reduzes; desfaz-te do que em ti é velho, porque vem aí o tempo de te renovares; não te chateies por mor de bagatelas, homem, ri-te, que esta vida são dois dias. Virá em abono desta interpretação o que Frazer diz dum costume iroquês “próprio das festas do Novo Ano, em que homens e mulheres, na véspera da cerimónia da expulsão dos maus espíritos, iam de tenda em tenda, como loucos, escacando e atirando ao chão tudo o que encontravam”? 1

vê ao que te reduzes; desfaz-te do que em ti é velho, porque vem aí o tempo de te renovares; não te chateies por mor de bagatelas, homem, ri-te, que esta vida são dois dias

Vamos a factos. Logo em 1911, Gomes Pereira atribui interesse cultural a um jogo praticado em Murça: “Domingo da caqueira – Em certo domingo da Quaresma as pessoas vizinhas e conhecidas entram em casa umas das outras e trazem para a rua toda a louça de barro que encontram, e começam depois a jogar e atirar com ela uns contra os outros, até a desfazerem em cacos”. 2 O costume, ainda que sem o pormenor obrigatório do surripianço, manteve-se até hoje em muitos lugares de Trás-os-Montes e Alto Douro, transferindo-se ora para o Entrudo (Douro Superior) ora para o Domingo de Páscoa (Barroso, concelho de Alijó, etc). Usam-se cantarinhas (panelas, caçoilos, pucarinhos, bizorros e até bilhas) de barro preto, mas também é frequente a utilização de uma cabaça. Formada uma roda larga em plena rua, o recipiente é lançado indistintamente de uma pessoa para outra que a devolve a quem muito bem entender, não consistindo o objectivo em atingir o destinatário, mas em obrigá-lo a agarrar bem o presente. Em Vila Real, é na noite de S. Pedro que os pucarinhos de Bisalhães voam de mão em mão. Em Quintanilha (Bragança), no dia da Ascensão. Noutros lugares o divertimento transita para o domingo de Pascoela: “Na Pascoela joga-se a panela”. O mesmo se passa, de preferência no Carnaval, em numerosos sítios das Beiras. E noutros países, como a França, segundo A. van Gennep.

A caqueirada, propriamente dita, é um tipo de jogo diferente e consiste em atirar cacos velhos, de mistura por vezes com outros detritos, para dentro de uma casa cuja porta ou janela baixa estejam abertas.

A caqueirada, propriamente dita, é um tipo de jogo diferente e consiste em atirar cacos velhos, de mistura por vezes com outros detritos, para dentro de uma casa cuja porta ou janela baixa estejam abertas. Para os lados de Alfândega da Fé chamam-lhe cacadas: “Abriam-se as portas das pessoas, de mansinho, e atiravam-se pela casa fora coisas que causassem ruído. Usavam-se para isso bulhacos secos, cacos partidos, e, por consideração, castanhas, amêndoas e nozes”. 3 Vá lá, quanto aos frutos secos que, pelo visto, partiam dos rapazes para poiso de namoradas, claro. No Alentejo, diz Pombinho Júnior 4, dão ao arremesso o nome de casquelhadas (em Serpa ao caco chamam casquilho) e, “pelo menos em Portel”, a coisa chega a passar as marcas, envolvendo-se os casquelhos (cacos, caqueiros) “em imundícies, dejectos até”, diabrura, diz P. Júnior em 1939, que “já vai desaparecendo”. Em Penamacor, diz-se cacadas ou caqueiradas (“panelas velhas cheias de latas, bugalhos, cacos, etc”) e, em Vila Real de Santo António, testadas.

Na Papilhosa (Bairrada), em que até as “cascas de moluscos” partilhavam a receita, “Tratava-se de uma partida carnavalesca muito preferida das moças novas, inofensiva e tantas vezes de êxito retumbante, quer pelo susto provocado pelo barulho da caqueirada, quer pela reacção exuberantemente exteriorizada pelos atingidos que aí se viam obrigados a limparem, de novo, a sua casa”. 5

Que lhes parece, leitores? É de ver no jogo da panelinha e na caqueirada alguma filosofia de fundo, embora esse fundo possa assemelhar-se a uma espécie de buraco negro, absorvente, após radiações luminosas? A trampa que se usa em Portel não quererá mesmo dizer por imitação antecipada da advertência de 4.ª feira de Cinzas (“lembra-te, ó homem que és pó e ao pó hás-de voltar”): lembra-te, ó homem que és trampa e que à trampa hás-de voltar? Bom, que seja ao menos trampa caída das estrelas e, por isso, com algo de celeste, como penso. A menos que a caqueirada não passe de pura brincadeira. Decida o leitor.

  1. Frazer cit. por Veiga de Oliveira, Festividades Cíclicas em Portugal, Dom Quixote, Lisboa, 1984, p. 309
  2. Gomes Pereira, Revista Lusitana, XIV, Lisboa, 1911, p. 82
  3. In Raízes da Nossa Terra – cancioneiro transmontano, Bragança, 1985, p. 78
  4. J. A. Pombinho Júnior, Revista Lusitana, XXXVII, Lisboa, 1939
  5. António Messias A. Silva, in Pampilhosa – uma terra e um povo, n.º 3, GEDEP, Pampilhosa, 1984, p. 26
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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