Aqui está um dístico bem popular quanto ao paralelismo estrutural e anafórico e quanto ao imaginário mágico-religioso. Sabe-se que a quadra e o e dístico são os sistemas estróficos mais do agrado da criação poética do nosso povo que, por outro lado, reservava na sua imaginação um lugar especial para os galos (que tanto simbolizam o garbo e a fecundidade como, sendo pretos, uma certa aliança com forças misteriosas) e para os anjos (estes a representarem a protecção divina, seres benfazejos, e também solares – tal-qualmente os galos, aliás, – de asa brilhante e acolhedora).
Curioso é que este dístico me tenha ocorrido, há dias, isolado de qualquer contexto, ao aproximar-se o dia de S. Bartolomeu, o tal 24 de Agosto em que o Diabo anda à solta, segundo crença de há muito difundida, e em que (cá está o móbile da associação!) se oferendam por vezes frangos pretos ao santinho. Parecia-me haver nesses versos um cheirinho bartolomeico. Mas a memória, pela enésima vez, pregou-me uma boa partida, deixando-mos despernados, por alguns dias, sem topar o mínimo resquício de enquadramento verbal. Vá lá que, uma vez outra, me apareciam como duas pétalas que ao de leve me rasassem os picos da lembradura, perfumando-a, sem todavia atinar com o poiso de sua flor. Ia-me zangando. Já é hábito. Que não desejo aos leitores. E, finalmente vencido, tive de ceder. Mas, antes de envergar o balandrau de mendicante e ir esmolar a outra freguesia, sendo a dos livros a mais segura, como parece, tentei descobrir-lhes morada em alguma tradição oral que por aí restasse, como é sempre vezo meu em casos de reconstituição.
E, humildemente, gravadorzeco em punho, fui bater à porta de uma senhora de oitenta anos, muito dada à prática religiosa e com um arsenal bem recheado de rezas antigas. Para espanto meu, apenas me soube dizer o depois, que o antes – olhe, estou a ficar meia taralhouca – varrera-se-lhe da lembrança. Bem lhe falei de S. Bartolomeu. Nada; só isto:
Já os galos pretos cantam,
já os anjos se alevantam,
já o meu Deus subiu à cruz,
para sempre, amém, Jesus.
E regressei de asa caída como um galispo a meio da paparoca. Mas não desisti.
Quinze dias depois, lá estava eu ao pé da santa mulher, resistindo à tentação dos livros. Agora, sim: a memória reverdecia. E, enquanto ela falava, sentia-me como se me guindassem dum poço, encharcado de limosidades e com um ou outro pingo anamnésico em brilho envergonhado: de facto eu estava redondamente enganado quanto à ligação dos teimosos versinhos a S. Bartolomeu. Aí vai a reza completa, que é afinal o padrenosso pequenino:
Padrenosso pequenino
pelo monte vai rugindo,
leva a chave do Paraíso.
Quem lhas deu, quem lhas daria?
Foi a Santa Maria Madalena.
Cruz no monte, cruz na fonte,
nunca o Diabo connosco se encontre,
nem de noite nem de dia
nem à hora do meidia.
Já os galos pretos cantam,
já os anjos se alevantam,
já o meu Deus subiu à cruz
para salvar as nossas almas,
para sempre, amém, Jesus.
Dou um pulinho do concelho de Alijó para o do Seixal e de livro 1 faço agora a seguinte colheita:
Padrenosso pequenino
pelos montes vai rugindo,
com as chaves do Paraíso.
Quem lhas deu, quem lhas não dera?
Foi a Maria Madalena.
Já os galos pretos cantam,
já os anjos se levantam,
já o meu Deus subiu à cruz.
Para sempre, Amém, Jesus.
Há uma grande variedade de padrenossos pequeninos pelo país, não figurando em muitos deles os tais galos pretos e os anjos, que tanto me fascinaram, e incrustando-se noutros versos comuns a orações diferentes, isto a demonstrar a fixação do gosto a certas passagens mais sugestivas.
Quanto ao S. Bartolomeu, causador da minha perturbação memorial e santo membrudo e altaneiro que atravessou os séculos a pôr o pé no cachaço do Mafarrico, prometo para o próximo número o registo de uma encomendação, interessantinha, como se verá, e que me meteu em trabalhos semelhantes aos do padrenosso pequenino.
- Crenças, mezinhas e benzeduras, recolha da Extensão Educativa do Seixal, pág. 68. O livro não traz data, mas a sua publicação é de um dos últimos anos, o que prova a subsistência de traços culturais comuns a zonas do nosso país, à partida consideradas muito diferentes. ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.