1
Tu és o ser mais belo do mundo.
O ser em toda a sua beleza enchendo o meu espaço.
Que bom, filha, falar-te com esta simplicidade!
Vejo em ti o mundo que começa, sem estrelas
ainda altas, sem rios que dividem, um impulso
de luz, uma luz que eu não sei donde vem,
apesar de tudo, e instante a instante
inutiliza a sombra dos limites que eu
e tua mãe te demos.
2
Os adultos dizem facilmente que as crianças
brincam, dando à palavra brincar um magro
conteúdo. Nós somos a gente séria que constrói
o mundo; vós, a carne tolerada, o grito
impertinente, a delícia necessária e devida
ao fim do trabalho. Um dia compreenderás isto
melhor do que eu – digo melhor
Porque acredito sinceramente no infinito. De tudo.
3
Brincas com um papel onde escreves
a tua alma. Nesta sala todos procuram decifrar
os teus rabiscos, vendo flores, cabeças, animais.
Vou guardar – disse eu, há dias – e talvez
mandar pôr um caixilho. Vê, filha:
projectei-me no papel, embebido de ti,
e vi talvez o que não vi. Narcisicamente.
Rir-te-ás um dia da minha ingenuidade?
4
De uma hora de televisão
apenas retiveste: uma papoila crescia, crescia.
Nem sequer dás conta que os teus pais
te ouvem nomear-te. Brincas.
E num desses rabiscos começo a ver uma coisa
importante: a história dum povo. O nosso.
Assente em maré de borrões, erguendo-se
na alvura – uma linha torcicolada, arrepiando
o infinito. Continuo a projectar-me.
5
Oh labareda de pétalas
organizando um suave amanhecer perfume
de rosmaninho e manjerico do monte em nossa aldeia
no rio do teu corpo translúcido incêndio de ser!
Estar aqui é estar-te a arte num gesto
que sobe de ignotos fundos marinhos
atravessa partindo-a a crosta da nossa malícia
e acende um desejo de sol.
6
Mordes agora um gomo de laranja. Papoilas
abrem-se rutilantes na tua voz
e sobrevoam os plainos húmidos do pensamento
cada palavra é uma bola colorida
que deitas ao chão saltita em ritmo crescente
explodindo em colares de luz que cingem
muito docemente cada uma das nossa ideias
oh labareda labareda de pétalas!
7
Retomas o silêncio. Estende-lo adultamente
sobre a mesa. O silêncio estava debruçado
dos teus olhos: bastou puxar levemente uma ponta.
Creio que não fui apenas eu a ver uma chuva
de estrelas azuis. O teu silêncio é cheio,
profundo e musical como o firmamento.
Escorre-nos por dentro dos olhos até à alma.
Eu olho para ti assim,
como se o mundo estivesse inteirinho à minha frente.
8
Agora é uma correria de partir vidros pela sala,
vidros de luz por todos os cantos.
Contornas a mesa como a cor contorna
um fruto. Só tu existes. Nós
existimos contigo, em ti. Quando paras,
devolves-nos a nós próprios, folhas
em branco, à espera de novo discurso,
margens que como tal te completam.
9
De novo o papel. De novo os rabiscos.
A seriedade do teu gesto comove-me.
Penso nos graves problemas deste país,
problemas que já entraram em nossa casa.
O ódio cresce nos laranjais do sonho,
andorinhas transformam-se em abutres.
Haverá um mundo que tu me queiras ensinar,
que eu já perdi,
que todos nós perdemos?
Filha, empresta-me uma só pétala do teu gesto.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.