Em Junho, a fruta começa a apetecer.
Um homem passeia no cais e debulha
uma nêspera com ar de quem faz horas.
8,20 – diz o relógio. Espera-se.
O comboio, um monstro de cem bocas,
pardo e caduco, fumega lentamente
como um charuto abandonado.
Manhã de vidro. Vê-se a montanha,
tem de se ver; e sabe bem
pôr os olhos lá no alto e deixá-los
escorregar pela vinha, deixá-los
de penhasco em penhasco, até à ponte
de coxas graníticas e feias.
O homem da nêspera está junto
duma gaiola de pombos correios.
– Não bula – diz um carregador
com ar de Presidente da República.
Caixas, molhos de alface, um cabaz
de cerejas, sacos e mais sacos
e um bando de pardais numa roseira.
Continua a esperar-se. Pouca gente.
Os homens de fato-macaco olham-nos
como a encomendas sem valor.
O que importa – está-se mesmo a ver –
são as caixas e os sacos. Caixas e sacos.
O homem da nêspera tem bigodinho grisalho.
Lá anda ele. Pôs um cigarro na boca
e os olhos num rapaz que toca gaita de beiços,
cara ao alto como se olhasse um avião.
O rapaz tem certas semelhanças com o Marceneiro
e uma flor vermelha no casaco desbotado.
Que fresca melodia, correndo
aos saltinhos pelo pavimento
de cimento e enrolando-se toda verde
num ramo de laranjeira e crescendo,
crescendo como um fruto dourado!
Partiiiiiida – grita uma voz de lâmina.
Partiiiiiida. Volto-me. Lá se foi o homem da nêspera.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.