Deus fez-nos livres; Salazar quis rivalizar com Deus e negou-nos o direito à liberdade, acorrentando-nos a um corporativismo medieval e indiscutível. Tão ferozmente indiscutível que os seus esbirros iam esmagando, uma a uma, as sementes da filosofia política libertadora, como se fossem vermes corrosivos. A criação filosófica atrofiou-se, alguma da mais sã e válida literatura ficou nas gavetas, as organizações sindicais foram metidas numa camisa de forças insuportável ou apenas suportável por um estoicismo que fez dalguns sindicalistas autênticos heróis. O espectáculo das últimas quase cinco décadas é desolador. Alguns dos nossos melhores pensadores procuravam no estrangeiro condições de trabalho; outros eram injustamente expulsos das universidades e dos locais onde trabalhavam. Os jornais, com poucas excepções, caíram nas mãos das empresas bancárias e da indústria pavoneante. O teatro quase não existia porque a censura cortava impiedosamente páginas e livros inteiros. “O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há” — disse Garrett. Ora a civilização portuguesa tinha-se transformado numa civilização elitista, militarista e de grandes multidões de emigrantes. E que dizer dos nossos camponeses, operários e funcionários desprotegidos, roendo as unhas e os sonhos, em sucessivos anos de vacas magras, ouvindo inutilmente inúteis promessas dumas tantas “conversas em família”?
Estas coisas têm de ser ditas com toda a clareza e vigor, porque a hora que passa é transparente e viva como a luz das nossas montanhas. Transmontanos e durienses que me ouvis, sejamos dignos da liberdade que o exército português pôs inteirinha nas nossas mãos. Saudemos a memorável página que os nossos soldados escreveram no livro da nossa história, página cujos princípios têm de ser vigorosamente defendidos por todos nós. E acrescento: a hora é de esperança, não de vingança. A esperança firme é vingança sublimada. O sangue correu puro em nossas prisões e gelou muitas vezes no coração de todos nós. Esqueçamos do passado tudo quanto honestamente pudermos esquecer e dêmo-nos as mãos democraticamente com os olhos postos no futuro. Volto a citar o grande democrata que foi Garrett: “este é um século democrático; tudo o que se fizer há-de ser pelo povo e com o povo… ou não se faz”. Pois bem, nós somos o povo e talvez nunca tivéssemos disso tanta consciência como hoje. Onde quer que nos encontremos – no campo, na escola, na oficina ou numa repartição, — trabalhemos doravante com mais entusiasmo, com um grande amor, porque sabemos enfim que Portugal é de todos nós, de todos, sem excepção (…).
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.