Fui lá uma, duas… olhe, aí umas três vezes. Que é como quem diz três ou quatro anos. Era a feira mais catita de Vila do Conde. Sempre, batia sempre no dia de S. Sebastião: no vinte de Janeiro, como o senhor deve saber. Ora… claro que sabe. E quanto ao que me diz, de se chamar pela graça do santinho, olhe… até me dá vontade de rir. Seria pori de o santo aparecer como um rapaz todo saído das canelas. Ou a feira não se chamasse também Feira dos Namorados. Namorados, pois, como as gaivotas atrás do isco. Deixa-me rir. Pergunta-me se eu também ia? Ora, já lhe disse que sim. Ia mais o meu pai, mais a minha mãe, que negociavam em carniça de porco: chispe, beiça, orelheira, por aí, coisas de salgadeira. Punham a carniça numas caixas, assim como as da sardinha, e esperavam a clientela. Enquanto a água corria, eu ia dar uma volta pelo Largo de S. João. Comassim, a canalha também precisa de se advertir. E até topava umas raparigas da serra da Maia como eu, sempre a mascar tremoços. Que estás aqui a fazer? – vá de perguntar à Chaveca, uma moça toda repenicada. Parecia uma campainha, deixa-me rir…, encostada a uma porta daquelas casas que estão mesmo ao fundo da ribanceira do convento. Sabe onde é? Ora, pois. E ela, a Chaveca, disse-me logo, sem papas na língua, que estava ali à espera dos namorados. O senhor arrepare, arrepare bem: à espera dos namorados. Tal e qual. Eu até podia pensar que iam cair do céu abaixo ou então rolar pela tal ribanceira do convento, como aconteceu com aquele pilar que, por mor duma faísca, veio de catrâmbias e deu cabo da casa dum senhor que tinha uma pastelaria. O senhor conhece? Ah, não! Também não pode saber tudo. Pois é. A rapariga estava à espera dos namorados. E fiquei banzada para a minha vida, quando vi outras como ela, por aqui e por ali, todas delambidas e de modos sarapintados.
Descaradona! – disse eu cá para mim, ao ver uma, que eu não sei onde pendurava o pote, e se ria a bom rir, como se lhe tivessem feito cócegas. Parecia uma parede caiada de fresco. Aquilo estava na galhofa, por mor de qualquer coisa. O riso pega-se e eu, que remédio, também me ri. Riu-se toda a gente. Ouvi um foguete, pum, que veio mesmo a propósito. E lá fui à minha vida, a apreciar a tropa fandanga e o gado fraldiqueiro. Havia frangas que tinham uma batata na mão. Para que quereis vós as batatas? – perguntei. Eu por esse tempo era ainda uma ignorante, mas fiquei a saber: por cada namorado, que cada uma catrafilasse, dava uma unhada na batata, arrancando-lhe um naco. Lá piada tinha. Olhe, nesse dia, a Chaveca, que era toda rapioqueira, levou para a Maia uma batata com trinta rombos. Ah, o senhor ri-se? Pois, pois: quer saber como era o namoro? Simples como uma alface: o rapaz chegava à beira da flausina e punham-se os dois à conversa – lá o que diziam não sei… Era assim.
Mas, arrepare bem, se a rapariga tinha pinta, podia vir outro e, em vindo, o de antes tinha de desandar. Como cavacas. Costume é costume. Às vezes, até faziam bicha. Deixa-me rir. Cá por mim, sempre gostei de ver os homens embeiçados. Um pagode! Aquilo era um pagode! Mas havia galifates que se acontentavam em bater no rabiosque das cachopas com colheres de pau. Atrevidos, lá isso eram. Mas também era um pagode. Era… agora parece que os tempos mudaram. Que me diz? Se sou casada? Não senhor: já fui. Agora sou viúva. O senhor quer saber se foi lá que arranjei o meu homem? Olhe que isso é uma coisa parecida com a curgidade, mas não me ensaio nada para lho dizer. Foi, sim senhor. E foi à primeira unhada. Fique-se lá com esta…
A senhora Rosa Maria tem uns cinquenta anos e pico. Talvez tantos como as ilusões que leva numa cesta cheia de brinquedos e procura vender pela praia adiante. As suas palavras magoaram-me. Como a luz. Entraram-me nos olhos onde ainda conservam as asas.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.