É bonito este nome: desgarrada. Na desgarrada canta-se ao desafio. É um despique entre duas pessoas, pelo menos, sem distinção de sexo, embora os homens sejam mais atraídos, sobretudo depois de um copito. Na desgarrada, o cantador desgarra-se, solta-se das garras da compostura diária e ei-lo por aí fora, até às nuvens.
– Ouça lá, senhor João:
Não me venha com cantigas.
Vá namorar com as velhas
e não com as raparigas.
– Raparigas são espigas
donde nos vem o sustento.
És uma uma espiga tão boa
É por isso que eu me tento.
– Vá procurar alimento
à serra do Caldeirão:
há lá recas rechonchudas
e vacas até mais não.
Etc.
A desgarrada dura o tempo que durar e dá para rir. Uma gaita de beiços ou uma concertina acompanham e os mirones de todo o mundo fazem roda. Risinhos abafados ou gargalhadas estridentes, palmas, assobios, palmas. Afina-me lá essa garganta, pá! Mais um copo. Eh, rapariga duma cana!
Pode ser numa romaria. Ou num terreiro, no fim da vindima. Na desgarrada, a alma anda ao vento, cheia de asas. O gosto vem já das tenções trovadorescas.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.