Na última vindima, ao cortar as uvas
que deitava nos baldes, a gente falava alto
e dizia graçolas como nos anos anteriores.
Isso era o que se via. Mas de facto
a gente cortava bocadinhos de si própria
e deitava logo punhados de terra
no vinho que acabava de descer à cova.
Assusta ouvir o silêncio. A toupeira entra
no coração e dói, o que sempre acontece
com um amor aflitivo. Os camiões, rom-rom,
continuam a subir penosamente a ladeira,
mesmo nas descidas. Ao longe fulge
o clarão imenso das cidades.

in O homem que fugiu com o rio às costas (livro de poemas inédito)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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1 replies on “A vindima

  • Orlando Miranda

    Aqui, o António Cabral estava a pensar na sua última vindima. Só um conhecedor profundo da região poderia associar o vinho que cai na vasilha ao “silêncio profundo” .

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