–Quando quiser, é só apitar.
Apitei. O telefone não dá apenas chatices, sendo a chatice-mor as contas galopantes: dá também para combinar uns petiscos em tarde azul. A minha cara-metade a acompanhar-me no bolinhas, não vá um tipo tresmalhar-se nos regalos e na pingoleta. Já ao curvetear no Espinheiro, em terras marónicas de Candemil, o verde-terra me acariciou. E na rampinha do restaurante o casal Miranda a receber-nos de braços abertos. Dos sinceros, não dos parlamentares, ainda que estivéssemos na celeste parvónia do eloquente António Cândido, deputado dos quatro costados.
Ela um sorriso permanente, a querer dizer-me que as professoras da primária só assim é que vão lá; ele, também professor, um rapagão musculoso a quem já vi, numa festa de jogos populares, levantar pela argolinha da praxe uma pedra de cento e vinte quilos, tendo-a suspensa, com um garbo e pêras, durante oito segundos e meio.
– Pensei que era em casa de vocês.
– Ora, aqui a dona Ondina Cerqueira é que sabe.
Entrámos no Restaurante Marão e espreitei a cozinha: um odor de coisas que estrelejavam e donde fluía a vozinha perfumada de giestas e rosmaninho. Estou coa minha gente – pensei.
– Um copo de verdinho, já?
– Quatro, pois.
O salpicãozinho, ele também cheio de perfumes, e o pãozinho de quartos de Padronelo aconselhavam a entrada. Era um branco, todo ouro, colheita cuidadosa do profe, de se lhe fazer uma vénia. Fiz. Vai uma canja? Eu não, eu sim, pratos em diálogo de sedas, lá veio finalmente o famoso verde que ali me atraía, dando comigo a pensar que tantas e deliciosas verduras de Candemil me iam reverdecer os cantinhos da alma. Como aconteceu. Estava óptimo. Repeti a dose.
– Como é qu’é, Dona Ondina?
– A minha filha já traz aqui a receita.
Valia a pena esperar que, entretanto, chegava uma travessorra de cabrito assado, com batatinhas louras e salada. Oh santo Deus! Isto em plena quaresma! Olhei por uma janela e pedi desculpa ao Senhor de todas as verduras, pelo desmando. Mais um? Sim, bote lá. Aqui também são boas as papas de grelos à moda de Candemil. Agora?! Não, prà próxima. Já estava a ver… E a desempenada Cerqueirinha, mais versada em letras do que a mãe, acabou por trazer a receita do verde que me circulava, ainda quentinho, nas avenidas do sangue. Ei-la, senhores leitores, experimentem e, se não sair bem, façam como eu: vão a Candemil, ali a poucos quilómetros de Amarante, quem sobe.
Valia a pena esperar que, entretanto, chegava uma travessorra de cabrito assado, com batatinhas louras e salada. Oh santo Deus! Isto em plena quaresma!
“Ingredientes: miúdos de cabrito (fígado, pulmões, coração e rim), trigo de Padronelo, sangue cozido, também do cabrito, salpicão e linguíça (caseiros). Tempo de cozinhado: 1h e 30m. Os miúdos, com uma folha de louro, deixam-se cozer durante 30 minutos e, depois de arrefecerem, partem-se aos bocadinhos miudinhos. Num tacho faz-se um refogado onde se junta o salpicão e a linguíça partidos em bocadinhos. Deixa-se arrefecer uns vinte minutos. A este preparado adicionam-se os miúdos do cabrito, uma folha de louro, um pouquinho de hortelã e água até cobrir. Deixa-se ferver e junta-se o sangue bem ralado e o trigo em pedacinhos”. Só um pormenor: o cabrito convém que seja montês e pese entre 5 e 7 quilos, tanto para o verde como para o assado. Quanto à designação de verde para o acepipe, fiquei a saber que os miúdos, antes de cozinhados, estão verdes, pois.
E pronto. Tomado o café, lá fomos com o jornalzinho Águia do Marão debaixo do braço, à procura de outros verdes. Do ar puro da montanha. Primeiro, a visita sacramental às Furnas de Chelo que, segundo leio no jornal, em texto de Manuel Vilar, diligente pároco da freguesia, “foram sendo destruídas para se alargar o caminho e até para se tirar saibro”. Mal feito, claro está, pois tudo indica que as grutas alinhadas de um lado e de outro da via foram um eremitério em tempos remotos. Daí, com um ferido encanto, alcandorámo-nos até o planaltozinho de Corvachã, estacionando o carro, um pouco antes, para dar uma olhadela ao Penedo Longo, um menhir que, até de longe, mostra envergadura. Vamos lá? Bom, o caminho é de cabras… Outra vez será. Cortámos raminhos de flores, pulmões ao vento, e em breve nos empoleirámos no fraguedo, ao lado da capela de Corvachã, nome que o meu amigo Orlando pensa significar “ chã dos corvos “. Mas não seriam eles decerto a fazer aquelas escavações no fraguedo, em jeito de aras artificiais, que ali nos detiveram por algum tempo. Num dos ombros verdes, verdes da montanha. Os olhos em voo amplo.
– São horas. – Não se esqueçam das papas de grelos à moda de Candemil.
– Não perdem pela demora, caríssimos.
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.
Orlando Cerqueira de Miranda
É claro que Corvachã não é a Chã dos Corvos, mas foi a resposta dada para não estar calado. Segundo o parecer de Jorge de Alarcão, vem da divindade Corva, adorada na Serra da Marofa (a sul do Douro). Porém outras investigações levam a acreditar que venha de Korbã que era o nome dado pelos antigos Hebreus, a uma oferta a Deus, particularmente, em cumprimento de voto, o que ainda hoje acontece.
De qualquer modo, foi um texto publicado, há mais de duas décadas, em que o meu amigo Doutor António Cabral, falou de Candemil, da sua gente e um pouco da sua história, como é costume dos grandes escritores falarem das terras por onde passam, o que lhes dá uma certa maturidade, no modo como transmitir a liberdade.
Orlando Cerqueira de Miranda
Por isso, dever-se-á escrever Corba Chã.
Pedro Brás
Ah… que bom ficou o verde que acabei de fazer seguindo esta receita. A primeira vez que comi o verde ou como também é chamado – Bazulaque – foi na pensão Borges em Baião… adorava mas não sabia como se fazia.. nem o que era… 🙂
Agora já sei! Bem haja