Hiroxima (a ciência de matar)

Há muitas maneiras de matar:
com estilhaços
ou palavras,
com uma fina lâmina,
com um riso régio
com o ar
que se dá a respirar.
Não sei qual era o processo mais eficiente dos Faraós.
Entre os romanos a ciência estava desenvolvida:
da volúpia de Nero saltavam as bestas feras
ou a chama azul dos gládios; ao ave caesar!,
começava a correr na arena um sangue fresco.
Eficiente, sem dúvida!
O padre António Vieira
disse a D. Afonso VI, na carta do suor e da liberdade,
que, no Brasil, os portugueses também sabiam.
Hitler foi mais humano: pôs a Wehrmacht aos
gritos
e pronto!: Quem corre por gosto não cansa.
Estaline e outros desenvolveram a ciência, criando
processos
até ali desconhecidos: inventaram a morte natural.
tão natural como um SS no travesseiro.
Isso sim! Um riso régio, o estafermo de quem sabe, sabe
e dá-se a alma a Deus, por aqui já não ter utilidade.
Verdade!:
Certas pessoas inventaram a utilidade das almas.
Há-as que são produto de primeira necessidade,
como os diplomatas e espiões;
outras envelheceram
e jogam-se ao conhecidíssimo universal cesto dos papéis.
Preferível, talvez, o processo de Hiroxima.
Aí, ao menos, não houve escolha. Tudo. Tudo,
desde os velhos pequeninos aos meninos velhos.
Tudo. As ruas
e os desejos, os cabelos verdes e o sol que entra
nas casas.
Assim, ninguém pôde queixar-se de nepotismo.
Ora que diriam os senhores que sabem de justiça
se a bomba apenas danificasse os aeródromos,
torpedos humanódromos e outros dromos semelhantes?
Tudo. Foi tudo.
Os beijos ficaram suspensos,
como espigas debruçadas nas patas do vento.
Os olhares gelaram dentro das órbitas.

a mão de sempre resistiu nos escombros e escreveu:
o amor é mais forte do que a morte.
Lá de cima riram-se. Um riso régio
que ainda se ouve nos quatro cantos do mundo.
Continua-se a matar. O último grande processo
é o do ar
que se dá a respirar.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

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