Descrição
O Alto-Douro é fértil em poetas autênticos e, coisa estranha para quem não conheça a sublimidade dos seus panoramas e a grandeza da sua tragédia humana, todos esses poetas tem um inegável pendor religioso, mesmo quando afastados de qualquer confissão: João de Lemos, Junqueiro, Miguel Torga. A António Cabral, que para mais é sacerdote, aplica-se, de igual modo, essa mesma lei: a sua poesia é viril, religiosamente viril, e toda projectada para o infinito, mas a sua visão do destino humano não é ingénua e dulçorosa, mas trágica e inquieta. O homem é um ser incompleto mas das suas frustrações nasce a sua grandeza: “Ah Senhor, – este amor – que emerge incandescente do fracasso – é a maior prova de que tu existes”.
Poeta religioso mas que por isso mesmo não se esquece de integrar a vida toda nesse sentimento supremo: “Ser ou não alegre, eis a questão. – O resto é procurar o pomo da alegria”.
Mas toda a procura leva a um certo vazio: de vazio em vazio vamos amando e pelo amor realizamos como seres humanos mas experimentamos também, aí, a incompletude do nosso ser: “Eternos emigrantes – eis o que fomos – somos – e seremos”.
O presente volume de poemas foi, ainda em manuscrito, premiado pelo S.N.I., e é agora editado pelas Edições Panorama, a cargo do mesmo organismo oficial. 1
T. S. Elliot, que António Cabral transcreve, em legenda de ante-abertura, escreveu: – “As palavras, em seu esforço, / Fendem-se e às vezes rompem-se, debaixo da carga, / Debaixo da tensão, resvalam, deslizam, perecem”. E como Augusto Gil, que regista que “se o pensamento for aéreo e fino / fica um farrapo o que a palavra deu”, com versos equivalentes em Fausto Guedes Teixeira e outros poetas nossos e estrangeiros, António Cabral anota, em abertura: – “…o pensamento gira, / mas as palavras murcham / exaustas, retorcidas”. Não é preciso já o pensamento ser “aéreo e fino”, porém: – António Cabral sabe bem que “a flor é tudo, aquilo / que acende o sonho e o gela”.
Poeta que sabe distinguir entre a flor e a palavra, a sua poesia transmite mesmo uma real inquietação e uma real mensagem, postas em termos de uma real maturidade poética. E António Cabral sabe, pois, ir da flor ao sonho, tocando-o no milagre do fogo, como sabe ir aonde o chamam, “antes de tudo, homem”, dizendo-se, ao homem, pela palavra reinventada à fragrância da flor, ao calor da vida. 2
Poeta da vida, do homem, do sonho, do amor, de Deus, da montanha, ele é, sobretudo, um poeta que deseja essas realidades até aos ossos. Nele, o barroquismo não consegue vingar, a palavra não se presta a um culto excessivo, substituindo o conceito, como não consegue vingar um conceptismo, essas duas pechas de certo neo-barroquismo de alguns poetas da sua geração. Ele sabe o que quer; há nele uma real inquietação; há nele uma mensagem a transmitir, algo do homem a explicar ao homem. Ele sabe que a flor não é a palavra: – “A flor é tudo, – aquilo / que acende o sonho e o gela”; ele sabe que tem de reinventar a própria palavra, pois o pensamento gira mas as palavras “murcham / exaustas, retorcidas, / Perdem a incandescência / E têm belas formas / Só, de brancos mármores”. Mas ele sabe ainda, sabe até, ir da flor ao sonho, tocando-o no milagre do fogo, como ir aonde o chamam “…antes de tudo, homem”, dizendo-se ao homem pela palavra reinventada à fragrância da flor e ao calor da vida. 3
Poeta de pés fincados na terra que pisa, António Cabral sabe que algo mais existe além dos gestos e os olhares, que “um fresquíssimo luar humanizará os escombros”. 4
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