Suponhamos que dois rapazes chegam a um ribeiro que não podem atravessar sem molharem os pés. Para evitarem este incómodo, tentam descobrir o processo de passarem para o outro lado, isto é, servem-se da inteligência, evocando ao mesmo tempo qualquer experiência passada. Numa palavra, engendram uma táctica. Saltar? É uma hipótese, que, todavia, abandonam, por a corrente ter uma largura respeitável. Cogitam. Até que um deles vai a uma árvore, corta dois galhos, cada um deles bifurcado a meio, coloca-se com os pés em cima deles e atravessa ufano o ribeiro. O outro naturalmente imita-o.
Quanto a isto, vamos citar Jerome Bruner: “grande parte do pensamento processa-se com a ajuda de instrumentos culturalmente inventados”. Assim como “pregar pregos não é natural para a mão sem o martelo”, também atravessar aquele ribeiro não parece natural àqueles rapazes sem andas. As andas são um instrumento cultural, que, uma vez descoberto (modificado), entra ao serviço do pensamento, o qual, sob pressão do impulso lúdico, intui o interesse da actividade em si (caminhar em andas), desencadeando a acção motora que leva à repetição e ao jogo. De facto, depois de atravessarem a corrente de água, os rapazes podem divertir-se a caminhar com o auxílio das andas, organizando mesmo uma corrida (competição).
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.