Que o culto de S. Nicolau acabasse por dar origem ao Pai Natal tem a sua razão de ser: a tradição imaginou-o e iconografou-o como amigo das crianças, como se pode ver na catedral do Funchal em que é representado com mitra e báculo (bispo que era) e com três meninos ressuscitados numa tina (obra da Escola Portuguesa, 2.º quartel do séc. XVI). Os saxões chamaram-lhe Santa Claus (corruptela de Sanctus Nicolaus), tomando-o como prodigioso benfeitor da pequenada. A designação propagou-se a outros povos nórdicos, caso dos finlandeses, cujas terras nevadas são um ambiente propício a este mito invernal. Afrancesando-lhe o nome, os brasileiros preferem chamar-lhe Papá Noel.
A liturgia cristã celebra a festa de S. Nicolau a 6 de Dezembro e, para dele receberem uma prendinha, as crianças alsacianas e holandesas, na noite de 5 para 6, penduram na cremalheira da cozinha e sob a chaminé um sapatinho esperançoso, o que também acontece em Portugal, mesmo junto de um fogão ou da Árvore de Natal, em noite de Consoada. É famoso o quadro de J. Steen “Festa de S. Nicolau”, que se encontra no Museu de Amesterdão e mostra uma cena familiar com uma menina alegre pelos presentes recebidos e um menino a chorar por ter deparado com uma chibata no seu sapato em castigo de qualquer maldade, valendo-lhe a avó que o chama para o consolar com uma surpresa.
Hoje, em muitos lugares portugueses, também, sobretudo nas grandes cidades, o Pai Natal foi perdendo gradualmente junto da pequenada muito prestígio e encanto que lhe advinham da sua origem desconhecida e ainda de ser esquivo aos olhares, errante e imprevisível. Já se vê entrar nas escolas, hospitais, sítios onde decorrem festas natalícias para crianças e até anda de porta em porta, quando não é transformado num boneco a decorar lojas e supermercados. Tornou-se familiar. Humanizou-se bastante – talvez em demasia franjado de branco, pelos ares mágicos da caracterização e pelas surpresas que reserva no saco que transporta, o que continua a excitar as crianças que nas festas escolares se divertem muito ao verem um ou outro colega a imitarem-no, mesmo que facilmente os possam identificar por baixo do disfarce. Neste caso, o mistério é transferido dos actores para aquilo que representam, como acontece numa celebração religiosa mais explícita, por exemplo, quanto aos “anjinhos” de uma procissão.
É perfeitamente natural que o imaginário de uma ou mais comunidades se fosse abastecendo de motivos sagrados, sorte que bafejou este S. Nicolau que inclusivamente é o patrono da Rússia, cujo último czar lhe ostentava o nome. Os seus restos mortais encontram-se em imponente igreja da cidade italiana de Bari, desde 9 de Maio de 1807, após a tentativa bem sucedida de os retirar a ocultas da cidade turca de Mira, onde se mantinham após a sua morte, em 6 de Dezembro de 345. Os sucessos e milagres que lhe andam atribuídos não foram porém sujeitos a verificação crítica pela historiografia. Os relatos lendários foram-se acumulando, de forma a preencher vazios da alma popular, o que veio a torná-lo um dos taumaturgos mais venerados pelo mundo fora. Nasceu em Pátara (Ásia Menor) por volta de 280 e terá sido um homem de extrema generosidade, apiedando-se dos pobres e desprotegidos. Conta-se que ressuscitou dois estudantes assassinados por motivo de roubo; que, em três segundas-feiras (donde nasceram as três segundas-feiras de S. Nicolau), dotou três raparigas cujo pai destinava à prostituição, propiciando-lhes assim o casamento; que em viagem marítima acalmou uma grande tempestade; que, após a sua ordenação episcopal, fez regressar à vida uma criança que havia morrido queimada, etc. Este milagre e o seguinte, por envolverem crianças, constituem sem dúvida o ponto de apoio da sua aura natalícia (em que há, note-se, uma duplicação alusiva: 6 de Dezembro e Natal).
Numa estalagem onde se acolhera, a caminho de Niceia, foi-lhe servida uma refeição com aparência de atum de escabeche. Mas um santo é um santo: soube logo que se tratava de carne humana, nada menos que de três meninos que o estalajadeiro havia assassinado, na sequência de outras pessoas cuja carne salgava e servia aos hóspedes simuladamente. S. Nicolau não se conteve e deitou ao dono da casa em cara o seu horrível crime, compelindo-o, na presença de testemunhas, a abrir a despensa. Após oração concentrada, elevaram-se de uma tina as três crianças, vivas e sorridentes. Lenda? Seja. A devoção ao santo é que se propagou triunfalmente a todo o mundo cristão, inspirando artistas e romagens, ocasionando a criação das mais fantásticas e radiosas figuras da mitologia infantil: o Pai Natal. Quem é o adulto, cujos pais ou tutores com tal crença, que não recorde na sua infância os lampejos dourados dessa ilusão? Virá a propósito citar Fernando Pessoa?
Mas, nada só que fosse,
Fica dele um ficar
Que será suave ainda
Quando eu não me
lembrar.
O Pai Natal é um símbolo. O simbolismo vivifica pelo menos metade da alma infantil, não ocupando aí um espaço menos vivo do que o referente à realidade tangível. O símbolo preside ao desejo na medida em que o enche, enche até o fazer voar. O voo para um desconhecido que vento propício pode trazer ao alcance da mão? Traga ou não traga: o símbolo é o pão do sonho – da vida do sonho – o sonho de uma “barbie”, por exemplo, de que as meninas tanto gostam. R. Clarke atribui um papel fundamental à simbolização, pensando não só nas crianças, mas em toda a humanidade, e diz: “Uma época sem símbolos é uma época morta”. E acrescenta: “Uma civilização que já não tem mitos está à beira do fim.” É por isso que a morte anunciada pela filosofia, o seu inevitável cepticismo, a obriga a refugiar-se nas culturas locais, no aparente, no fugidio, um “nada só que fosse”, de onde vem uma secreta respiração. O Pai Natal e outras ilusões são nadas culturais poderosíssimos, como os jogos infantis e os contos maravilhosos. Estes quem teria a coragem, o criminoso pensamento que fosse, de os asfixiar no universo da infância? 1
- No Porto, conta Helder Pacheco com Rosto da Gente, S. Nicolau era especialmente festejado a 6 de Dezembro, o dia de “S. Nicolau dos meninos”. Tradição que se foi e em que o santinho “vinha, não de trenó com renas a deslizar na neve, mas em veículos dos nossos – trazer contentamento aos jovens e aos meninos”. ↩
António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.